Roald Dahl na literatura, como na vida real

O escritor Ricardo Lísias critica alteração em obras literárias, como está ocorrendo com livros infantis do britânico Roald Dahl, autor de ‘A fantástica fábrica de chocolate’ e ‘As bruxas’

Por Ricardo Lísias, Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro


Roald Dahl autografa livros infantis em uma livraria de Amsterdã, em 12 de outubro de 1988: atual editora do escritor britânico decidiu retirar trechos de algumas das suas obras: censura? Rob Bogaerts/Anefo/12-10-1988

Quando um ensaio, de qualquer natureza, defende uma hipótese nazifascista, ele deve ser proibido. O exemplo principal é “Minha luta”, de Adolf Hitler. Acompanhado ou não de notas explicativas, fortuna crítica ou qualquer outro aparato, esse livro não pode ser distribuído. Com o número de organizações nazistas crescendo, é uma ilusão achar que boa parte de seus leitores serão “esclarecidos e educados” por alguma advertência. Ao contrário, vão comprar e circular o livro para fortalecer a sua ideologia.

Com a ficção é diferente. Quando uma personagem afirma que “Minha luta” deve ser livremente comercializado, está revelando sua composição ideológica: temos aqui um nazista. Com isso, se o autor for bem-sucedido, o livro irá narrar muito bem certas figuras do Brasil contemporâneo. Há alguns dias, por exemplo, um homem foi flagrado no Centro do Rio de Janeiro com uma suástica tatuada no braço. Conduzido à delegacia, foi defendido pela autoridade de plantão! Qualquer obra de ficção de qualidade que se voltar para o nosso país nos últimos anos terá personagens nazistas...

Personagens infames

Nas últimas semanas circulou mundo afora a notícia de que a editora inglesa das obras de Roald Dahl (1916-1990) está “suavizando” inúmeras passagens de seus livros. O britânico foi um dos principais escritores de livros infantis da história da literatura, com títulos como “James e o pêssego gigante” (1961), “A fantástica fábrica de chocolate” (1964) e “As bruxas” (1983), que foram adaptados para o cinema. Uma personagem que antes era “feia e bestial”, por exemplo, agora ficou apenas “bestial”. Achei estranhíssimo: a bestialidade é muito mais desagradável que a feiura! Há ainda a retirada de termos considerados ofensivos, como por exemplo “gordo”.

'A fantástica fábrica de chocolate', filme de 1971 protagonizado por Gene Wilder — Foto: Reprodução

Enfim, se eu for listar todas as personagens tóxicas, infames ou que simplesmente falam coisas desagradáveis nas principais obras da literatura, não vou precisar apenas de todo o jornal de hoje. Usarei o mês inteiro... A certa altura, o narrador de “Em busca do tempo perdido” (Marcel Proust, 1913) se torna uma figura desprezível, e o do romance “As benevolentes” (Jonathan Littlell, 2006), imprestável, para dizer o mínimo. E algumas figuras da obra de Hilda Hilst (1930-2004) são degradantes.

A literatura não pode prescindir de personalidades tóxicas, de personagens da pior natureza, de gente tão ruim quanto Adolf Hitler pois... elas existem. Seu jeito de pensar precisa ser esclarecido, a forma de comunicação deve ser exposta e o mal que fazem para o mundo tem que ser narrado.

Não há, por fim, diferença em obras de ficção voltadas para o público infantil. Crianças lerão as declarações tóxicas de algumas personagens de Roald Dahl e irão pensar: que pessoa horrível! Aliás, essa conclusão pode ser construída em sala de aula. Ora, não é a “suavização” de trechos de obras de ficção que fará com que estudantes que praticam bullying desapareçam da escola. Ao contrário: é a exposição desse comportamento em um romance que fará uma criança perceber como pode estar reproduzindo o que só personagens horríveis fazem. A literatura tem inúmeros recursos para produzir essa identificação.

Quem acha, portanto, que esse tipo de censura em obras literárias está colaborando para um mundo melhor, não apenas se engana: está na verdade ajudando a proliferação de comportamentos tóxicos, já que sua decodificação fica impedida. Nos Estados Unidos, sob argumento muito parecido, grupos ultraconservadores estão proibido a circulação de obras de ficção com, por exemplo, relações homoafetivas. No Brasil já houve tentativas assim também.

Uma obra de ficção não defende nenhuma ideologia: ela expõe e provoca o leitor. A partir dessa provocação, realidades poderão ser observadas e transformadas. Não é fazendo com que uma personagem tóxica se torne simpática que gente repulsiva vai desaparecer do mundo. Deixar de criar uma narrativa com personagens degradantes não fará o governo Bolsonaro desaparecer da História. Ele aconteceu mesmo. Quanto mais comportamentos da pior espécie forem expostos, discutidos, representados e repudiados, maior será a chance de que pessoas não queiram se parecer com eles. Esse tipo de ficção melhora o mundo.

Ricardo Lísias é escritor, autor dos romances “Uma dor perfeita” (2022) e “Divórcio” (2013), entre outros

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