Crítica: com prosa precisa e límpida, escritora aborda clichês que cercam maternidade

Em 'Como se fosse um monstro', seu segundo romance, Fabiane Guimarães não condena sua protagonista. Mais do que isso, a usa para subverter a ideia ainda comum de um destino biológico feminino

Por Isadora Sinay, Especial Para O GLOBO* — Rio de Janeiro


Protagonista de “Como se fosse um monstro” mostra a geração de um filho como uma reação biológica qualquer, sem envolvimento emocional Simone Marinho

Segundo romance de Fabiane Guimarães, “Como se fosse um monstro” narra a história de Damiana, uma mulher que trabalhou durante anos como barriga de aluguel e sócia de um enorme esquema criminoso de venda de bebês — assunto que de vez em quando volta ao noticiário do país.

A obra começa com ares de thriller: uma fazenda no meio do nada, uma jornalista que chega para investigar a vida misteriosa de uma mulher reclusa, uma atmosfera que, aliada ao título, parece anunciar que algo horrível está para ser revelado.

O leitor pouco sabe da protagonista, menos ainda de Gabriela, a jornalista. Fabiane é bastante hábil em revelar as duas mulheres aos poucos, jogando pistas e insinuações que criam a expectativa de que se está prestes a mergulhar em uma narrativa cheia de reviravoltas e descobertas.

Embora a autora sustente a aura de policial e incorpore elementos das narrativas de true crime, o que se segue é na verdade algo ao mesmo tempo mais profundo e também mais prosaico: a história de uma mulher simples e uma investigação dos limites do conceito de maternidade.

Damiana nasceu em Goiás, a mais velha em uma família pobre, com muitas irmãs. Não sabe ao certo quantos anos tem. Uma origem comum que leva a um destino ainda mais comum: a ida para Brasília trabalhar como doméstica durante a adolescência. É lá, vivendo no quartinho de empregada que representa ao mesmo tempo confinamento e libertação, que ela recebe pela primeira vez a proposta de emprestar seu corpo para gerar um filho, nesse caso dos patrões, e toda a operação acontece de forma amadora e traumática que levanta constantemente a pergunta de qual é a autonomia possível para esses corpos cujo trabalho é ser quase parte da mobília.

Depois dessa primeira vez, seduzida pela enorme quantidade de dinheiro que recebe e pela vida a que se acostuma a ter com ele, Damiana entra em um esquema de “fabricação em série” de bebês até que, por caminhos tortos, sua consciência lhe obriga a parar.

Julgamento

O maior trunfo do livro está na prosa precisa e límpida de Fabiane, que escreve em ritmo fluído e com diálogos naturais, e às vezes entrega frases memoráveis como “ela achou que o amava, por não saber distinguir os afetos”. Esse minimalismo da linguagem combina com o ar policialesco do livro, com um pouco da aura de Raymond Carver, um submundo sujo no qual circula uma protagonista de moralidade cinzenta, interessada em dinheiro e disposta a olhar para o outro lado sim, mas que pede à jornalista, e por consequência ao leitor, que não a julgue, não a olhe “como se fosse um monstro”.

A imagética da monstruosidade é recorrente para se falar da maternidade, e Fabiane sublinha a estranheza da duplicação do corpo, a experiência de “abdução” de si mesma que pode ser uma gravidez. Mas aqui o monstro não são nunca as personagens, mas a experiência em si que beira um filme de terror.

"Como se fosse um monstro", livro de Fabiane Guimarães (Companhia das Letras) — Foto: Reprodução

O olhar da autora é curioso e livre da mística santificante que muito se vê no discurso em torno da maternidade. Ela não condena sua protagonista e, mais do que isso, a usa para subverter a ideia ainda comum de um destino biológico feminino. Damiana fala com todas as letras que a cada filho que gerava tinha mais certeza que não deveria ser mãe. Rejeita o “instinto” que séculos de cultura misógina querem empurrar sobre as mulheres: a psique não é forçada a amar pelo corpo; o processo de gerar um filho, a depender das circunstâncias, pode ser só isso, uma reação biológica qualquer, livre de envolvimento emocional.

No entanto, essa subversão dos clichês do feminino é mais interessante em Damiana do que na jovem jornalista. Gabriela é em muitos momentos apenas um outro clichê cuja frieza, solidão autoimposta e rebote da dor em uma festa regada a drogas e álcool ecoam centenas de estereótipos de mulheres perdidas, personagens cujos autores estão muito preocupados em se livrar das armadilhas da feminilidade. É uma pena e, talvez, o único ponto fraco de um livro que, em seu tema e abordagem, é verdadeiramente inovador e que retrata com respeito, complexidade e humanidade infinita uma personagem que poderia ser um monstro, mas aqui é apenas uma mulher.

Isadora Sinay é crítica literária, tradutora e autora do livro “Você não deve esquecer nada”

‘Como se fosse um monstro’. Autora: Fabiane Guimarães. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 160. Preço: R$ 54,90. Cotação: bom.

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