Crítica: Margaret Atwood, muito além de ‘O conto da aia’

Coletânea com textos de não ficção da autora canadense mostra nomes que influenciaram uma das obras mais desconcertantes da literatura atual

Por Henrique Balbi; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro


Adaptação de “O conto da aia”, romance de Margaret Atwood lançado em 1985, tornou-se sucesso no streaming Divulgação

As décadas que “Alvos em movimento” cobre, entre 1982 e 2004, foram decisivas para Margaret Atwood: viram a escrita, a publicação e o sucesso de “O conto da aia” (1985) — que ainda viria a conquistar também o mundo do streaming. Sim, a sombra dessa distopia aparece em “Alvos em movimento”, mas não a ponto de lhe tirar o brilho.

Se a Atwood ficcionista tem ocupado os holofotes nos últimos anos, é outra, ou melhor, são outras faces que surgem da leitura desta coletânea de ensaios, resenhas, artigos, textos de intervenção, homenagem ou memória. Vemos a editora, ciosa de critérios para montar uma coletânea de contos; a ativista, defendendo o consumo consciente contra as mudanças climáticas; a viajante, explorando o Ártico; entre tantas. Da variedade, “Alvos em movimento”, que chegou às livrarias esta semana, forma uma espécie de retrato da escritora — mais eloquente quando indireto, quando se revela no que fala dos outros.

Poucos bastidores

Não que Atwood se esconda. As três seções do livro, divididas segundo as décadas de 1980, 1990 e 2000, apresenta pequenos textos introdutórios, meio dispensáveis, sobre sua vida em cada um desses momentos: onde morava, quais projetos a ocupavam, um ou outro percalço importante.

A escritora canadense também comenta sua obra em “Escrever utopia”, que aborda a criação de “O conto da aia”, e “Em busca de Vulgo Grace”, sobre seu famoso romance histórico.

Mesmo aí, porém, ela prefere se deter em obras e autores que a levaram a seus próprios livros, em vez das minúcias da escrita cotidiana. Um fala muito de Orwell, Thomas Morus e Aldous Huxley; o outro, de Susanna Moodie e do lugar da mulher numa sociedade canadense ainda em formação. Há pouco de bastidores, e menos ainda de autopromoção. Atwood prefere se dedicar à obra de Angela Carter e Virginia Woolf, de Gabriel García Márquez e Toni Morrison, além de escritores canadenses como Gwendolyn MacEwen e Morley Callaghan.

Em nenhum lugar da coletânea a revelação de si por meio dos outros fica mais vívida do que em “Ótimas tias”. Meio conto, meio autobiografia, ele constrói um perfil triplo: da mãe da narradora, de sua tia K. e de sua tia J.

Escritora canadense Margaret Atwood é uma das que foi alvo do ladrão de manuscritos, que também roubo o britânico Ian McEwan e a irlandesa Sally Rooney — Foto: Angela Weiss / AFP

A primeira, a primogênita, contrabalanceava arrojo e timidez: adorava cavalgar pela fazenda, valorizava o senso prático, mas adiou encarar a escola até que tivesse a companhia da segunda irmã. K. era dada à liderança, autora de planos mirabolantes, e minuciosa nas críticas aos serviços domésticos das irmãs. A caçula J., por sua vez, deixava aflorar o lado sensível — poeta antes de casar, ela é a primeira leitora entusiasta da narradora.

No período da guerra, quando as longas distâncias do Canadá não podiam ser percorridas devido ao racionamento de gasolina, as irmãs já adultas mantêm o contato via cartas. As que chegam à casa são lidas em voz alta pela mãe. Junto às histórias de infância, elas sugerem à jovem narradora um mundo de aventura, quase uma mitologia familiar.

Retomadas as viagens, a decepção: as pessoas reais eram “muito menores e mais velhas e menos vívidas do que deveriam ser”. O avô da narradora já não era o médico irascível que ameaçava as filhas com açoites, mas também saía a galope no meio da noite para salvar pacientes. Era um senhorzinho que cochilava a tarde toda.

Com essas coordenadas, nem seria necessário que a narradora descrevesse como sua vocação artística foi recebida pela família e pelas cidadezinhas onde moravam. O passeio pela mitologia familiar já bastaria para o perfil de quem perfila as tias: arrojo e insegurança, rigor e sensibilidade, a tensão produtiva entre a realidade e imaginação — do que mais precisam os ficcionistas?

Obsessões

Completam o retrato indireto de Atwood os ensaios sobre grandes obras e autores, onde ela colhe as próprias obsessões. Um exemplo: a remissão aos contos de fadas e à mitologia. É o que conecta o filme “A noite do caçador” — com Robert Mitchum como um pastor assassino, para Atwood uma versão adulta do monstro devorador de crianças —, o romance policial “Casino Blues”, de Elmore Leonard — em que se compara um gângster a “Mercúrio, deus dos ladrões, do comércio e da comunicação” — e livros de não ficção, como “Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores”, de Marina Warner. Em tanta disparidade, o olhar da escritora canadense encontra, ou cria, semelhanças.

Mas talvez a maior obsessão de todas seja o deslocamento dos ângulos habituais. Logo se pensa no insight que Atwood teve ao notar quão masculina era a tradição distópica de Orwell, Huxley e Zamiátin, seja na autoria, seja no protagonismo. Subverteu ambos e assim jogou nova luz sobre o gênero (em ambos os sentidos do termo). De certo modo, “Alvos em movimento” permite ao leitor um deslocamento parecido: desta vez é a ficcionista quem está na mira, dando a ver a autora numa nova imagem, tão multifacetada quanto intrigante.

Henrique Balbi é escritor e professor de Literatura

Alvos em movimento’. Autora: Margaret Atwood. Tradução: Maira Parula. Editora: Rocco. Páginas: 484. Preço: R$ 94,90. Cotação: ótimo.

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