É ela quem organiza a orgia: Conheça a professora que estuda a pornografia brasileira

Professora da USP que impressionou até Hilda Hilst reúne em antologias o melhor da sacanagem brasileira

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


A crítica literária Eliane Robert Moraes: 'Fantasia não é praticar. Se fosse, eu deveria estar presa pelas passagens de Sade que sei de cor' Maria Isabel Oliveira / Agência O GLOBO

“Alô, Nani, aqui é Hilda.” “Hilda quem?”, perguntou a crítica literária Eliane Robert Moraes ao atender o telefone naquela segunda-feira, 14 de maio de 1990. Era Hilda Hilst, que acabava de lançar “O caderno rosa de Lori Lamby”, o romance mais impuro que o Brasil já conheceu, relato de uma menina de 8 anos que decide se prostituir. Eliane havia resenhado o livro para o Jornal do Brasil e comparado Hilda a Georges Bataille, escritor francês dos mais indecentes. Hilda gostou tanto do texto, intitulado “A obscena senhora Hilst”, que quis marcar um encontro. Eliane foi.

— Ela abriu a porta, olhou para mim e falou: “E então, Nani, qual é a sua? Você é casada, solteira ou amigada? É lésbica? Tem amante?”. Vi que tinha um uísque em cima da mesa e disse: “Vamos beber que eu já te conto qual é a minha” — recorda a crítica.

Em conversa com o GLOBO em sua biblioteca, sob as vistas da obra completa do Marquês de Sade, Elaine contou qual é a sua. Ela nasceu em São Paulo, em 1951, é casada com o poeta Fernando Paixão, dá aula de literatura na USP e adora os romanções do século XIX. O Robert (pronuncia-se “Robér”) é suíço (mas ela jura que não há banqueiros na família) e o Moraes é baiano.

Eliane é da “geração que chutou o pau da barraca”. Aos 18, saiu da casa dos pais para “viajar, viver de bicos e amores mais soltos”. Em uma viagem à África, decidiu ser antropóloga e ingressou no curso de Ciências Sociais beirando os 30 anos. Feminista, interessou-se em estudar a pornografia. Ao escrever (com Sandra M. Lapeiz) “O que é pornografia”, livrinho da histórica Coleção Primeiros Passos, da Brasiliense, apaixonou-se por Sade, autor de “Os 120 dias de Sodoma”, que ele próprio descreveu como “o relato mais impuro que jamais foi feito”.

— Aí eu me desviei de vez — brinca a professora, que leu “Cinquenta tons de cinza” e achou “fraco demais”. — Na minha geração e nas seguintes, as mulheres se empoderaram. O sucesso desses livros é explicado pela nossa dificuldade de nos abrirmos a uma fantasia de submissão.

A crítica literária Eliane Robert Moraes, organizadora de antologias da literatura erótica brasileira — Foto: Maria Isabel Oliveira

Trabalho ousado

Eliane nunca quis ser “especialista”, mas é tida por seus pares como maior estudiosa da literatura erótica no país. César Braga-Pinto, professor da Universidade Northwestearn, nos Estados Unidos, disse ao GLOBO que, embora as pesquisas sobre o tema no Brasil remontem aos anos 1970, “nada se compara ao trabalho de Eliane”, que ele descreve como “surpreendentemente desbravador e ousado” por incluir autores nacionais e estrangeiros, a análise dos textos e a organização de antologias.

Autora de 13 livros, só no ano passado Eliane lançou três coletâneas: “O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)”, continuação de “O corpo descoberto”, de 2018, antologia de narrativas escritas entre 1852 e 1922; “Seleta erótica de Mário de Andrade”, autor cuja homossexualidade foi um dos maiores tabus do modernismo; e “Sexe et sexualité”, reunião de ensaios coorganizada com Olinda Kleiman e editada na França. Este ano, ela lança, aqui e em Portugal, “A parte maldita brasileira” (Tinta-da-China), com textos sobre os nossos maiores pornógrafos, como Nelson Rodrigues, Reinaldo Moraes e, é claro, Hilda Hilst.

— No prefácio a “Macunaíma”, Mário de Andrade diz que quando se juntam os brasileiros estão sempre “falando porcaria”, mas, ao contrário de alemães, franceses e indianos, não temos uma “pornografia organizada”. Li isso e pensei: “Mário, cá estou”. E sigo organizando a pornografia brasileira até hoje— diz Eliane, que no sábado lança “O corpo desvelado” na Livraria Jenipapo, em Belo Horizonte.

Sem palavras sujas

Um leitor desatento pode até se perguntar se alguns dos contos selecionados por Eliane são realmente eróticos. Incluído em “O corpo descoberto”, “Um modelo de marido”, de Coelho Neto, é protagonizado por um viúvo devoto que usou os ossos da falecida para confeccionar talheres, cinzeiros, cabines e peças de xadrez. É insólito, mas cadê a sacanagem?

— Imaginamos que o erotismo está no vocabulário, que certas palavras são pornográficas. Mas há livros super eróticos, como “Lolita” (de Vladimir Nabokov), que não tem uma só palavra suja. Onde está o erotismo, então? Geralmente, ligado ao corpo. E nas imagens. “A cadeirinha”, de Afonso Arinos, é a história de uma cadeira de sacristia. Não tem nada de erótico a não ser que você note que ali se sentava a mulher por quem o narrador tinha uma paixão — explica. — Esse deciframento do texto nos faz retornar para nossas vidas e perceber que o erotismo nem sempre está naquilo que é considerado sexual.

Escritor e professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, José Luiz Passos afirma que uma das virtudes de Eliane é a defesa da “autonomia da imaginação erótica” e a recusa da “instrumentalização política do desejo, que resulta em posições normativas e disciplinadoras”. De fato, ela soube de cara que não conseguiria encaixar Sade em seu feminismo (cujas bandeiras ela ainda empunha). E está acostumada com autores indomesticáveis — Nabokov, Nelson, Hilda — que vira e mexe são alvos da polícia da moral literária.

— Não entra na cabeça de muita gente, mas “O caderno rosa de Lori Lamby” não é um manual de pedofilia, é uma exploração da linguagem da perspectiva do infinito. Fantasia não é praticar. Se fosse, eu deveria estar presa pelas passagens de Sade que sei de cor. Tachar uma fantasia de “errada” pressupõe que haja uma “correta”. E muitas vezes é a “errada” que rende a melhor literatura. Jamais vou fazer apologia de práticas que devem levar à prisão. Mas a literatura é o espaço da liberdade. Se não pudermos nem escrever sobre as fantasias que realmente não podemos praticar, onde vamos colocar nossos demônios? — questiona a professora, que não voltou a ver a obscena senhora Hilst depois de ter lhe contato qual era a sua.

Serviço:

"O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)"

Organização: Eliane Robert Moraes. Editora: Cepe. Páginas: 592. Preço: R$ 90.

"Seleta erótica de Mário de Andrade"

Organização: Eliane Robert Moraes. Editora: Ubu. Páginas: 320. Preço: R$ 99.

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