Publicado na França em 1992, romance de Patrick Modiano, Nobel de Literatura em 2014, chega ao Brasil

'Um circo passa' traz temas caros ao autor, como os encontros amorosos, as ruas de Paris, e fantasmas do passado que retornam de improviso

Por Kelvin Falcão Klein, Especial Para O GLOBO


Patrick Modiano em Paris, em 2014, após o anúncio de seu Nobel de Literatura — Foto: AFP / THOMAS SAMSON

Depois de receber o Nobel de Literatura de 2014, o francês Patrick Modiano começou a ser lido e publicado com mais assiduidade. Uma parte dos leitores brasileiros, contudo, já o conhecia de longínquas edições dos anos 1980. Por isso, é bom reencontrá-lo agora com “Um circo passa”, que foi publicado na França em 1992 e somente agora chega ao país.

Reencontramos também os temas caros ao autor, em torno dos quais ele construiu seu universo, sua poética, sua entonação peculiar: os encontros amorosos, as ruas de Paris, as atividades escusas e enigmáticas de certos indivíduos, os fantasmas do passado que retornam sempre de improviso (com as malas, cartas, fotografias e objetos nos quais estão encarnados).

Em “Um circo que passa”, a ênfase está no olhar juvenil do protagonista, Jean, de 18 anos, mas que mente a idade, dizendo ter 21. Logo no início da trama, um policial pergunta a ele como passa seus dias. A resposta: “Vou ao cinema e a livrarias.”

Esse jovem, que já é um homem maduro quando narra a história, deseja se tornar um escritor — seu livro de cabeceira é uma antologia de cartas de Stendhal intitulada “Às almas sensíveis”. Jean está dividido entre o passado e o presente; de um lado, seus pais, que o abandonaram (o pai fugiu para a Suíça), e as lembranças da infância; de outro, Gisèle, a misteriosa jovem que ele conhece já no início do romance. Ao longo do percurso dos poucos dias que dura a trama, Jean passa a conhecer melhor Gisèle — embora parte desse conhecimento seja continuamente posto em dúvida — e, por consequência, suas próprias vivências e afetos.

Mas a organização da textura do romance é bem mais complexa do que esse binarismo de dois tempos. Isso porque várias vozes e presenças, vindas de lugares díspares, invadem a narração — como no momento em que, abandonando o apartamento da família, Jean recolhe alguns livros e recorda que um deles trazia na folha de rosto “o nome de um misterioso François Vernet”. Trata-se de um indivíduo que viveu ali antes da chegada do pai de Jean, que o conheceu e disse ao filho que era um escritor.

O mundo externo se encarrega das surpresas e dos sobressaltos. O leitor fica na expectativa de que algo dê errado, de que surja alguma rua sem saída para Jean e Gisèle (repare no manejo sutil que faz Modiano das regras do romance policial).

No mundo interior, Jean relata sua formação, sua transformação: “Pela primeira vez na vida eu me sentia seguro de mim mesmo. Minha timidez, minhas dúvidas, o hábito de pedir desculpas pelos menores gestos, de me depreciar, de dar sempre razão aos outros e não a mim tudo isso tinha desaparecido (...) Via-me num desses sonhos em que deparamos com os perigos e os tormentos do presente, mas conseguimos evitá-los, pois já conhecemos o futuro e nos sentimos invulneráveis”.

O final abrupto, contudo, lança uma luz diversa sobre toda a aventura que acompanhamos nas páginas de “Um circo passa”. É possível entender o final de muitas formas — como um recomeço, como uma lição sobre a fugacidade de tudo na vida, como mais uma etapa na formação do protagonista.

O certo é que se trata de um desenlace que revela a maestria de Modiano em seu ofício, algo que o leitor reconhece em cada página desse romance que é, ao mesmo tempo, profundo em suas reflexões e prazeroso em sua técnica.

Kelvin Falcão Klein é professor da Escola de Letras da UniRio

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