Crítica: romance discute papel da arte enquanto retrata uma jovem refletindo sobre a adolescência

Bom livro é estreia de espanhola de 27 anos e acerta pela estranheza

Por Mateus Baldi, Especial Para O GLOBO* — Rio de Janeiro


Xita Rubert Reprodução

Virginia tem 17 anos e está em viagem com seu pai, cujo amigo vai receber uma distinção acadêmica. Descendente de austríacos e criado no Egito, Andrew é um “cavalheiro extravagante” casado com Sonya, identificada por Virginia como sendo feita da mesma matéria que a sua, o que parece gerar um fluxo de antipatia e atração. No início da viagem, porém, o que parece ser uma performance estranhíssima mergulha Virginia em um difícil caos interior.

Numa manhã de fevereiro, ela é acordada pelo som de sirenes. Do lado de fora do hotel, um homem “de habilidades mentais reduzidas” protagoniza uma cena absurda, incompreensível, “não só à primeira vista como também depois aplicados os poderes da razão”. Dizendo-se “artífice e vítima de seu próprio acidente”, Bertrand está “imóvel e encalhado entre a traseira de um carro e a frente de outro”. Não demora para Virginia descobrir que, na verdade, trata-se do filho de Andrew e Sonya, um artista performático com fixação por esculturas.

Definido como uma “criatura” que deveria se tratado “como um igual”, Bertrand se opõe ao mundo tanto quanto seduz. É ele quem ditará os rumos de “Meus dias com os Kopp”, primeiro livro da espanhola Xita Rubert, de 27 anos.

A rigor, pode-se dizer que é um romance de formação. Nos últimos cem anos, esse gênero da narrativa longa matizou a passagem da adolescência para a idade adulta em clássicos como “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, “A montanha mágica”, de Thomas Mann, e “Bom dia, tristeza”, de Françoise Sagan. Seria, portanto, uma temeridade esperar que Xita Rubert tentasse reinventar a roda aqui. O jogo que ela propõe — e é um jogo, se considerarmos os duelos de Virginia e Bertrand — reside na investigação da perda da inocência através da arte, de uma pureza da arte, ou ainda da falta de limites sociais justificados pela arte.

Não há aqui a raiva de Holden Caulfield, o espanto de Hans Castorp, a perplexidade do pequeno Philip Roth em “Complô contra a América”, mas uma decantação do mundo, como se Rubert expusesse o exato instante em que os papéis sociais se tornam irrelevantes — uma fenda na estrutura com a duração de alguns dias.

Sonya e Andrew, por serem aristocráticos, moldam a realidade à sua volta para lidar da forma mais inconsistente possível com a inconveniência, essa perturbação que Bertrand causa; no limite, sua deficiência mental. Os três se equivalem e jogam um cabo de guerra invisível, tensionado a todo momento.

Para Virginia, o jogo dos dias com os Kopp é o da sanidade — se não deles e de Juan, seu pai, o dela própria, no auge do desconforto que a leitura do mundo lhe proporciona, na transição da adolescência para a idade adulta.

Juan, aliás, é uma presença importante. Nas viagens que fazia com a filha, após a “dança social de cumprimentos inesperados e olhares afetuosos”, os dois terminavam a sós, evitando os grupinhos. Não raro o pai a usava para evitar alguns colegas, e até gostava que pensassem que ela, na verdade, era sua namorada.

Conforme a narrativa avança, um subtexto de finitude invade o relato, adicionando camadas, como se os dias com os Kopp fossem o último idílio possível diante de uma doença “intrusa” que mudou tudo.

Para Virginia, escrever a adolescência ainda suscita o desejo de falsificá-la, negá-la, revertê-la. Essas rasuras consistem numa boa chave de leitura do romance, que no plano geral fica muito restrito às indagações sobre Bertrand. Tudo aqui é enevoado, espesso, e as crises familiares — “quando alguém de fora se infiltra na máfia articulada que cada família é” — não ganham tanto impacto quanto poderiam.

Razão no desconforto

Ao fim da leitura, “Meus dias com os Kopp” acerta pelo ruído, pela estranheza, afinal, “do desconforto sentido nasce, meses ou anos depois, a razão da história”. A memória de Virginia, “imprecisa, distorcida pelo constrangimento”, é a memória da adolescência. Que não precisa ser grandiloquente como a de um rapaz num sanatório, às voltas com um painel do mundo antes da destruição, tampouco a de uma jovem nas férias de verão com o pai. É, em resumo, um interregno na passagem da sanidade à loucura, e vice-versa. Uma borda tênue, opaca, que demarca os múltiplos limites que ousamos não enxergar. Como uma escultura de sombras.

*Mateus Baldi é jornalista e autor de “Formigas no paraíso” (Faria e Silva, 2022)

Crítica de livro ‘Meus dias com os Kopp’, de Xita Rubert: bom

‘Meus dias com os Kopp’.

Capa do livro "Meus dias com os Kopp" — Foto: Reprodução

Autora: Xita Rupert. Tradução: Elisa Menezes. Editora: DBA. Páginas: 128. Preço: R$ 52,95.

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