Crítica: Registro precioso da voz feminina na imprensa do século XIX

Textos de escritora portuguesa no jornal O Paiz mostram contradições de uma época de mudanças no papel das mulheres

Por Dirce Waltrick do Amarante, Especial Para O GLOBO


Maria Amália Vaz de Carvalho, em pintura de Veloso Salgado — Foto: Reprodução

Considerado um dos maiores jornais do Brasil na virada do século XIX para o século XX, O Paiz (editado no Rio entre 1884 e 1934) deu um passo importante ao incluir “temas femininos” em textos assinados por mulheres. A portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921) foi a primeira colaboradora do periódico, e suas crônicas estão reunidas no livro “Maria Amália Vaz de Carvalho: conversas lisbonenses & outros escritos (1884-1889)”, organizado por Ana Cláudia Suriani da Silva, Tania Regina de Luca e Alexandro Henrique Paixão.

Trata-se de um registro precioso, primeiro volume da coleção “As mulheres no jornal O Paiz”, que levanta a colaboração de escritoras no diário voltada “sobretudo ao crescente público feminino leitor de cotidianos”. Maria Amália escreveu para o jornal durante os cinco anos cobertos pela coletânea. O Paiz defendia políticas avançadas, mas tinha também um lado conservador e provinciano, que parece ter dado o tom das colunas de Maria Amália.

Há, por exemplo, um grande paradoxo entre a escritora formadora de opinião, a mulher independente e o conteúdo de seus textos para o jornal, nos quais defendia que a mulher deveria estar a serviço da casa, dos filhos e do marido. Esse paradoxo, vez por outra, aparece também em seus textos. Em uma crônica, por exemplo, a escritora afirma: “Triste do país em que o nível intelectual da mulher não sobe na mesma proporção em que sobe o do homem.” Já em outra, ela enfatiza: “Que a mulher pense, que a mulher leia, que a mulher se interesse, que seja curiosa de tudo, acho racional, acho legítimo, mas que ela aspire a tal transformação social que fará do homem costureiro e da mulher advogada, isso confesso que chega a exasperar-me.”

Chama a atenção, e chega a ser cômica, a antipatia da cronista pelas ideias mais arrojadas e modernas vindas de Paris. Maria Amália torce o nariz para discussões “sem sentido” que aconteciam por lá, como a de questionar o direito dos homens de abrirem as cartas de suas mulheres, ou a de estabelecerem “na sua legislação essa solução violenta ao problema do casamento”, o divórcio.

Nas artes, suas ideias são igualmente conservadoras: “Salvo exceções esplêndidas, que são os milagres da moderna arte, os que dantes faziam anjos fazem agora monstros!”

A descrição da rainha Vitória, que ficara viúva havia pouco tempo, é impagável: “Encerrada na sua dor sem consolo, que de tudo a isolou, menos dos seus pesados deveres, ela lembra uma daquelas doces princesas das lendas medievais, chorando eternamente na sua torre solitária.”

Os organizadores da coletânea não omitiram fragmentos ou amenizaram frases da escritora, mesmo as consideradas hoje inadmissíveis. Como deveria ser feito com autores de outras épocas e culturas, eles contextualizaram e discutiram o papel da autora e dos textos.

Dirce Waltrick do Amarante é professora da UFSC

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