'O inconsciente corporativo': contos expõem o lado ridículo da vida digital contemporânea

Todas as histórias do livro de Vinícius Portella abordam alguma ferramenta tecnológica

Por Henrique Balbi; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro


Em busca do clique perfeito. Redes “exigem” registro de tudo o tempo todo Unsplash/Gian Cesco

Embora as tecnologias digitais estejam nos engolindo, a literatura brasileira ainda não achou uma forma potente de elaborá-las. Onde está a grande obra da vida virtual, como as que se tem da rural e urbana? Os contos de “O inconsciente corporativo”, de Vinícius Portella, apontam possibilidades interessantes, às vezes realizadas a contento.

As histórias abordam alguma ferramenta tecnológica. Um linguista tenta programar uma inteligência artificial para criar contos de Jorge Luis Borges. Um rapaz rouba a identidade de uma conhecida, passando-se por ela num aplicativo de relacionamentos. Um burocrata da Guatemala enfrenta um incidente diplomático com um líder de um fórum virtual que coordena tiroteios a escolas. Entre outros.

Os oito contos, mais uma vinheta de abertura, podem ser lidos na chave do “patético”, em ao menos dois sentidos.

Primeiro, o do senso comum, sinônimo de “ridículo”. O teor satírico predomina em histórias como “O Sr. Denner Voltasso Não Entende”, sobre um figurão cujo poder político e financeiro se mantém, embora o de raciocínio esteja se esfarelando. Também é o caso de “366.GGR”, em que um funcionário de uma loja de informática recebe de um estranho a tarefa de converter imagens para o formato “ggr”. Fotos estranhas, de pessoas que não parecem humanas, com algo sombrio a seu respeito.

Oscilações

Tão curtos quanto eficazes, esses contos acertam seus alvos com ironia e um divertido senso de absurdo. Seus narradores oscilam entre a adesão aos fatos contados, dando-lhes um tom de naturalidade, e um distanciamento que afia a sensação de insólito.

A mesma oscilação, no entanto, prejudica outros contos no segundo sentido de “patético”: capaz de comover, causar piedade, tristeza, tragédia etc. Em especial nos contos mais longos que tratam de personagens antipáticas ou mesmo odiosas, a ironia parece frear o envolvimento emocional. É como se a história se preocupasse demais com o “risco” de ser mal entendida. Quer mais se defender dele do que permitir uma imersão no ponto de vista livremente escolhido.

“Demarcação Diamantina” ilustra a dificuldade. A startup LiveupCrypto é fundada por dois herdeiros, Lucca Lucchesi e Mateus Gonçalves da Mota. Nenhum deles precisava trabalhar, mas ainda assim se dedicam ao projeto. Lucchesi, por acreditar sincera e fervorosamente na sua “missão espiritual ou política” (página 136); o hedonista Mota vai no embalo do amigo, e quer se provar diante da família. A empresa nunca decola, e suas alavancadas se mostram cada vez mais daninhas: logo depende de especulação e crime.

A sátira está nítida e funciona bem. Só que a história não nos convence do fervor de Lucchesi, por exemplo, porque ela o mantém a uma distância segura. Parece não querer se contaminar. Traçando um paralelo meio torto, é como se Policarpo Quaresma fosse apenas um saco de pancadas. Pancadas merecidas, sem dúvida, que garantem o riso. Mas há uma pungência — no mínimo, nos funcionários da LiveupCrypto, muitos deles adeptos dos mesmos discursos que fazem a cabeça de Lucchesi — que a ironia monocórdica sabota.

O próprio livro tem um contraexemplo: o conto-título, sem dúvida o ponto alto. Belinda é uma advogada corporativa, mulher negra que ascendeu por si. Um dia, num jantar na casa de amigos (ricos) do marido (rico), percebe que a animação a que sua filha está assistindo reproduz de modo literal um sonho seu, frequente durante o processo de fusão de dois conglomerados de mídia, tocado por Belinda. Ela chega até ao roteirista da série e não há explicação plausível para a coincidência. Melhor evitar spoilers, mas o final é digno de “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet (outro exemplo de sátira que também comove).

Aqui a história se permite aderir ao ponto de vista da personagem, baixando a guarda, abrindo espaço para quem lê tirar a própria interpretação. Isso poderia ser um problema na internet, nas redes sociais, com sua aversão à ambiguidade e à multiplicidade de sentidos. Mas não é na ficção. Muito pelo contrário. Nesse sentido, “O inconsciente corporativo” talvez aponte um caminho na busca pela elaboração literária da vida digital: qualquer forma que assuma — conto, romance ou outra coisa ainda —, ela terá que funcionar como literatura.

Henrique Balbi é escritor e professor de Literatura

‘O inconsciente corporativo e outros contos’. Autor: Vinícius Portella. Editora: DBA. Páginas: 216. Preço: R$ 59,90. Cotação: bom.

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