'Morte em suas mãos': narrativa subverte romance policial para investigar a sociedade

Terceiro romance de Ottessa Moshfegh se assemelha muito a “Sobre os ossos dos mortos”, da Nobel polonesa Olga Tokarczuk

Por Mateus Baldi, Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro


‘Seu nome era Magda’. Suspense da americana Ottessa Moshfegh começa com bilhete misterioso que dá novo sentido a uma viúva de 72 anos Unsplash/Matild Vistback

Recém-viúva, Vesta Gul sai pelo bosque para uma caminhada matinal com seu cachorro. Eles estão em Levant, um quilômetro mata adentro, e Charlie não para, não fareja, sequer percebe que há um pedaço de papel no chão. Um bilhete. Quando se abaixa para pegá-lo, Vesta tem sua vida mudada por quatro frases curtas, diretas: “Seu nome era Magda. Ninguém jamais saberá quem a matou. Não fui eu. Aqui está seu corpo”.

Terceiro romance de Ottessa Moshfegh — o primeiro após o estrondoso sucesso de “Meu ano de descanso e relaxamento” (Todavia, 2019) —, “Morte em suas mãos” bebe da literatura policial. Sozinha aos 72 anos após décadas de relacionamento com Walter, um cientista que achava todas as pessoas um bando de “toupeiras, cordeirinhos, tolos”, Vesta enxerga no aparente enigma do bilhete uma chave para o propósito de sua nova vida.

Determinada a solucionar o assassinato de Magda, que ela sequer sabe quem seria, Vesta rompe com o ambiente pacato que a cerca por meio de um mergulho caótico em si mesma — “instintos são assim”, escreve, “nem sempre fazem sentido, e não raro nos levam a traçar caminhos perigosos”.

Interlocutor canino

É bonito o movimento de súbitas revelações internas, mais para o leitor do que para a própria Vesta, criando quase um jogo de sobreposições. Ao tentar resolver o enigma de Magda, Vesta mergulha em si, lançando luz sobre as frestas de seu relacionamento com Walter e a sua própria condição de mulher num país como os EUA. Não à toa, é em Charlie, o cachorro, que ela encontra a única interlocução possível. Há algo de pouco são neste jogo, mas também de liberdade — do pensamento, da fluidez do corpo pelos territórios.

Traduzido por Bruno Cobalchini Mattos, “Morte em suas mãos” se assemelha muito a “Sobre os ossos dos mortos”, da polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel em 2019, e também publicado pela Todavia, em tradução de Olga Baginska-Shinzato. Ottessa nunca comentou a possível influência da Nobel, mas as duas obras subvertem o gênero policial para, a partir de uma senhora meio estranha, investigar a natureza psicológica não do crime, mas de uma sociedade em escala reduzida. Num plano macro, Ottessa se sai melhor do que Tokarczuk.

Num sentido remoto — talvez nem tanto —, não seria distante pensar em “O estrangeiro”, de Albert Camus, e sua arquitetura do desvio do que de fato importa. No caso de “Morte em suas mãos”, as súbitas revelações dão lugar a uma clareza que submerge a narrativa superficial, chamemos assim, em prol de uma nova história, muito mais importante, balizada em aspectos como memória e classe social. Em tempos de literatura cada vez mais explicativa, é um acerto como as revelações se dão, em procedimento e tom, neste romance.

Mas tudo isso derrapa quando Ottessa escolhe trazer para a narrativa o poeta William Blake (1757-1827). Ao pinçar justamente os versos que nomeiam o livro de Tokarczuk, a americana envereda por uma desinteressante, ou pelo menos não tão forte como poderia ser, discussão metalinguística que tem seu foco no romance policial. A força no arco de Walter, que reside no não-dito, se perde nos eventuais acenos ao leitor.

No entanto, já em sua porção final, “Morte em suas mãos” volta aos trilhos. Não é possível deixar de sentir uma mistura de desespero, pela forma como Ottessa faz seus personagens agirem, e alívio, por não ceder a um possível desejo do leitor. Porque assim como “Meu ano...” não era um simples acerto de contas com uma cidade pré-Terror, mas cuja protagonista já estava absolutamente imersa na paranoia, aqui também não haveria de ser uma história policial com um mistério resolvido ao lado de suspeitos e policiais. Vítima e criminoso se embaralham, deixando ao final uma única sugestão de culpa, que transborda o espaço de Levant rumo a uma solução muito mais satisfatória, e por isso mesmo complicada, que dá ao leitor a sensação de ter perdido algo não identificável, como um corte profundo, que demora a fazer efeito — até que o faz.

Mateus Baldi é mestre em Literatura e autor de “Formigas no paraíso” (Faria e Silva, 2022)

‘Morte em suas mãos’. Autora: Ottessa Moshfegh. Tradução: Bruno Cobalchini Mattos. Editora: Todavia. Páginas: 215. Preço: R$ 74,90. Cotação: bom.

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