Lev Tolstói descreve adoecimento da sociedade russa no início do século XX na novela 'O cupom falso'

Publicado no Brasil pela Editora 34, livro traz narrativa breve de autor conhecido por obras volumosas, como os romances 'Guerra e paz' e 'Anna Kariênina'

Por André Rosa; Especial Para O GLOBO


Pintura mostra Tolstói arando em Iásnaia Poliana (1887) — Foto: Reprodução

Paul Gauguin, o pintor pós-impressionista, dizia que quando aprendesse a pintar com a mão direita, passaria a pintar com a esquerda; e, quando se tornasse ágil com a esquerda, passaria a pintar com os pés, numa busca incessante da forma exata, da mot juste de que falava Flaubert. Na literatura, o mesmo ímpeto poderia ser atribuído ao escritor russo Lev Tolstói (1828-1910). Conhecido, sobretudo, por seus volumosos “Guerra e paz” e “Anna Kariênina”, obras-primas em que a arte do romance foi elevada ao seu ápice, foi na velhice, no auge da maturidade, que ele se revelou também um mestre das narrativas breves, gênero que vinha praticando desde a juventude.

Em “O cupom falso”, novela que acaba de ser publicada pela Editora 34, Tolstói condensa em poucas páginas toda a complexidade de um grande romance e retoma os temas fundamentais que atravessam o conjunto de sua obra: as injustiças sociais em uma sociedade desigual e absolutamente estratificada, a miséria dos camponeses, a fragilidade dos núcleos familiares, a crise moral da Rússia, a crítica à igreja ortodoxa e a busca por um cristianismo humanitário capaz de redimir os seres humanos.

Dividido em duas partes, o enredo se estrutura por uma série de histórias que se entrelaçam como desdobramentos de uma espécie de pecado original. Tudo começa com dois estudantes que falsificam um cupom para saldar uma dívida — esse cupom é passado adiante em uma loja de acessórios fotográficos, e o proprietário do comércio, percebendo que foi ludibriado, usa o cupom para comprar lenhas de um camponês; e este, por sua vez, é preso por apresentar o cupom falsificado em uma taverna.

Posteriormente, procurado pela polícia, o comerciante nega que tenha comprado as lenhas do camponês, e como prova de sua palavra recorre ao testemunho do seu zelador, que sustenta a mentira mediante o suborno com alguns trocados.

Do mesmo modo que o proprietário subornou o seu funcionário, o camponês também precisou subornar a polícia para se ver livre da prisão. Essa sucessão de acontecimentos toma uma proporção vertiginosa, de modo que os personagens (que chegam a somar mais de duas dezenas), movidos por razões econômicas, vão corrompendo uns aos outros, bem como se corrompendo a si próprios, numa espécie de quadrilha cujos ecos chegam aos ouvidos do próprio tsar.

Visão teológica

O ciclo de maldades só é interrompido quando um dos personagens-chave encontra a redenção de seus crimes no Evangelho — mas não nas escrituras segundo a leitura ortodoxa, e sim por meio de uma identificação direta com o próprio Cristo, sem intermediários padres, sem ícones ou imagens religiosas. Do mesmo modo que a maldade havia desencadeado uma avalanche na primeira parte do livro, na segunda a conversão também produz efeitos que se espalham progressivamente, do assassino em série que abandona a violência ao carrasco que se recusa a cumprir o seu serviço, até chegar à origem de tudo: o estudante que falsificou o cupom.

Esse desdobramento sintetiza toda a visão teológica de Tolstói, cuja rebeldia anárquica de um cristianismo pacifista e distante de cerimônias oficiais já havia resultado em sua excomunhão da igreja ortodoxa russa.

A composição de diferentes quadros que se alternam e dão forma à narrativa também é amarrada de uma maneira muito peculiar, quase cinematográfica. Como observa a tradutora Priscila Marques, Tolstói, nas aberturas dos capítulos, se valeu de um recurso linguístico de natureza temporal (“enquanto isso”, “e nesse meio-tempo”) análogo a procedimentos de montagem cinematográfica, o que permitiu ao narrador se deslocar no tempo, recuperar fios narrativos e amarrá-los a fim de evidenciar a amplitude da trama decorrente do ato inicial de falsificação de um cupom, bem como a sua reação em cadeia sobre a vida de outros inúmeros personagens. Não é sem razão, portanto, que “O cupom falso” tenha sido tão bem adequado ao cinema com o premiado filme “L’Argent” (1983), do cineasta francês Robert Bresson.

Redigida entre 1880 e 1904, a novela só foi publicada postumamente, em 1911. Naquele período, Tolstói pôde testemunhar a decadência e o início da ruína do império tsarista, bem como o surgimento dos chamados niilistas, grupos revolucionários cuja atividade se exercia sobretudo por meio de atentados contra políticos e altos funcionários do governo, tipos que são descritos na novela por meio dos personagens ateus e terroristas.

Mais que a alegoria das proporções que uma simples diabrura juvenil pode alcançar, ou mesmo de como o mal pode ser tão frutífero no coração dos homens vazios, em “O cupom falso” há a representação de um mundo no limiar de seu desaparecimento. Ao descrever o adoecimento da sociedade russa no início do século XX, Tolstói traçou um retrato verdadeiramente documental de um país que se desfazia e estava às portas de uma revolução que não tardaria a chegar.

André Rosa é crítico e mestre em Literatura Comparada pela UFRJ

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