Autor de ‘Alice no país das maravilhas’ traz fantasma apresentando como funcionam as rígidas regras do além

'Fantasmagoria e primeiros poemas' é o o poema mais longo de Lewis Carroll

Por Dirce Waltrick do Amarante, Especial Para O GLOBO — São Paulo


Poemas de Lewis Carroll têm fadas malvadas e espectros arrogantes Unsplash/Andrew Nee

No cenário literário de hoje, as grandes protagonistas são as narrativas baseadas em fatos reais e experiências pessoais, mas nad um fantasma totalmente imaginário para dar um susto no leitor e lembrar que a ficção cria também paisagens e mundos fabulosos. Afinal, como diria Guimarães Rosa, em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, tudo aconteceu “direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr , sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor”.

"Fantasmagoria e primeiros poemas, de Lewis Carroll" (1832 -1898), pseudônimo do inglês Charles Lutwidge Dodgson, clérigo e professor de matemática, especialista em lógica e mais conhecido por seu livro Alice no País das Maravilhas, chega sem dúvida em boa hora. Em tradução muito bem resolvida e criativa de José Francisco Botelho e Paula Taitelbaum, a poesia de Carroll nos insere no mundo imaginário da literatura de melhor qualidade. O escritor inglês é um dos pais, juntamente com seu conterrâneo Edward Lear, do que veio a ser conhecido como literatura nonsense, que subverte a lógica, causa perplexidade e passa a perna no leitor, o qual acaba rindo muitas vezes de si mesmo.

“Fantasmagoria”, publicado pela primeira vez em 1869, é o poema mais longo do escritor, e já foi traduzido para o português do Brasil, em anos passados. Os versos de “Fantasmagoria” contam o encontro entre o proprietário de uma casa e um fantasma, que lhe explica como funcionam as regras no além, as quais seguem protocolos e hierarquias, pois, afinal, esse fantasma é um inglês da era vitoriana. Algumas categorias de espectros, por exemplo, seriam ricos e arrogantes a ponto de desdenhar a morada de um fantasma comum, como comenta a assombração: “Parecem orgulhosos demais para entrar/ Em uma morada mortal como a minha”. O dono da casa retruca indignado: “‘Como então podem afirmar/ Que meu vinho é ruim de tomar/ E que minha casa é de ‘segunda linha’?’”.

No além também existe realeza, a qual, na obra de Carroll, não costuma perdoar seus súditos. A protagonista mais famosa do escritor, Alice, quase perde a cabeça a mando da Rainha de Copas, esse episódio remeta a estes versos: “A Quarta Regra veta a invasão do local/ Onde outro fantasma já esteja instalado./ Espectro que o fizer, vai se dar mal/ (E a não ser que Rei perdoe o tal)/ Ele será sumariamente executado”.

Nada de instrutivo

A esse poema satírico segue-se uma antologia dos primeiros versos de Carroll, alguns deles retirados de “Poesia utilitária e instrutiva” (1845), na qual constam poemas que o autor escreveu para os seus irmãos mais novos, Wilfred e Louisa, de 7 e 5 anos respectivamente, quando mal havia completado treze anos. A poesia de Carroll não têm, contudo, nada de instrutivo ou utilitário: a autor das aventuras de Alice, aliás, sempre questionou a necessidade de se tirar preceitos “morais” de tudo, o que acabaria cerceando a liberdade de fruição e de criação. Em “Minha Fada”, um menino tem ao seu lado uma fada que constantemente a reprime. É um paradoxo, pois geralmente concebemos as fadas como seres bondosos e compreensivos: “Tenho uma fada aqui, bem do meu lado,/ Dizendo que não devo cochilar./ Quando gritei de dor, agoniado,/ Ela disse: ‘Não deves soluçar’./ Quando sorri no meio de um festim,/ Me disse: ‘Tu não deves gargalhar’.” Portanto, a história não poderia concluir diferentemente: “Moral “tu não deves”.

Em “Melodias”, Carroll busca inspiração nos limeriques, poemas com um ritmo bastante regular, de origem incerta, mas que ficaram famosos graças a Edward Lear, que publicou, em 1846, A book of nonsense (Um livro de nonsense), com mais de cem limeriques. Diferentemente dos poemas de Lear, que não apresentam um desenlace, os de Carroll terminam com uma “conclusão”, a qual, porém, é estapafúrdia: “Havia um esquisito coronel/ Que vestia um sombreiro de papel./ Era um chapéu marrom e feio/ Que lhe cortava a testa ao meio;/ E a culpa, ele dizia, era do Céu.”.

As ilustrações de “Fantasmagoria”, originalmente assinadas por Arthur B. Frost, e as ilustrações dos demais poemas, do próprio Lewis Carroll, foram retrabalhadas por Sandro Fetter e Paula Taitelbaum, que, além de tradutora, é ilustradora e editora. Tão difícil quanto traduzir os versos do autor inglês é interferir nas ilustrações que os acompanham. Nas duas tarefas a equipe foi bem-sucedida.

O que esse livro demonstra, e aí está a sua importância, é que a arte, e talvez só ela, nos tira do sério no bom sentido, é claro.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Cenas”, e traduziu escritores como Joyce e Ionesco

‘Fantasmagoria e primeiros poemas’

Autor: Lewis Carroll. Tradução: Francisco Botelho e Paula Taitelbaum. Editora: Piu. Páginas: 128. Preço: R$ 68. Cotação: ótimo.

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