Em 'Gandhi e Churchill', historiador traça paralelos e antagonismos entre os dois líderes políticos

Livro deve ser consumido em 'doses homeopáticas' e sem pressa — embora o conteúdo seja denso e abrangente, Herman mostra notável destreza, especialmente, para elucidar os assuntos mais complexos que surgem de forma recorrente a cada capítulo

Por , Em O Globo — Rio de Janeiro


Mahatma Gandhi e Winston Churchil Arquivo

É impossível contar a história do século XX sem reservar uma boa parte para os feitos de Sir Winston Churchill e Mahatma Gandhi. Ambos são lembrados, com razão, como líderes de grande coragem que desafiaram a tirania e moldaram suas nações. O problema é que este pensamento comum tende a ser, muitas vezes, unidimensional — aspecto que o historiador americano Arthur Herman busca subverter no monumental “Gandhi e Churchill”, publicado originalmente em 2008 e disponível em pré-venda no Brasil pela Editora Record.

O escopo colossal deste livro, que remonta episódios vitais no processo de colonização da Índia pelas forças britânicas no século XVIII, aponta para um objetivo claro do autor: traçar, de forma paralela, perfis complexos de dois homens que transformaram a era moderna. Churchill foi muito mais do que o primeiro-ministro que enfrentou os nazistas na Segunda Guerra Mundial, assim como Gandhi vai além do pacifista que liderou a resistência não violenta na campanha pela independência da Índia.

A relação intrínseca das duas nações é fundamental para compreender a rivalidade que guia a narrativa organizada por Herman. Se a Grã-Bretanha transformou a Índia com a Proclamação da Rainha Vitória, em 1858 — um documento que garantia proteção “igual e imparcial da lei” para os indianos e propiciava a construção de pontes, rodovias e escolas —, em contrapartida, a Índia também havia transformado a Grã-Bretanha com o vasto comércio de importação, fundamental para a economia do Império e para a população britânica, que desfrutava de uma grande quantidade de produtos indianos, como o algodão e o tradicional chá.

Logo, um jovem militar, de família aristocrata e com fortes ambições políticas, aprendera desde cedo com o pai (também político) que a independência da Índia seria uma derrota com consequências inestimáveis para a Grã-Bretanha e, portanto, dedicaria sua vida a prevenir que isso acontecesse. Por outro lado, um jovem advogado, de família hindu e inspirado pelo texto religioso de Bhagavad Gita, estava empenhado na luta pela liberdade indiana e dedicaria sua vida para tornar isso realidade.

Breve encontro

A única ocasião em que Mahatma Gandhi e Winston Churchill estiveram frente a frente foi em novembro de 1906, em Londres, quando Churchill era subsecretário das colônias britânicas e Gandhi, um advogado que representava os direitos dos indianos que trabalhavam na África do Sul. Segundo Hermann, Churchill ficou impressionado com a habilidade de Gandhi para negociar, e o encontro terminou em tom amigável. Os desdobramentos desses eventos, porém, despertaram um antagonismo entre os dois veteranos da Guerra dos Bôeres (Churchill servira como soldado; e Gandhi como carregador de feridos — ambos defendendo o mesmo lado, ironicamente).

“Não é de se espantar que os apelidos prediletos de Churchill para Gandhi seriam ‘faquir’ e ‘fanático’ (...) Para salvar o Império Britânico, Churchill faria acordos com racistas sul-africanos; com radicais trabalhistas; com separatistas americanos; e até com o próprio diabo, Joseph Stálin. E qualquer pessoa que se atrevesse a ficar no caminho de Churchill seria tratada de forma brutal ou mesmo desumana. Gandhi foi o primeiro a aprender essa lição, em 1906”, escreve Herman, evidenciando o contraste entre as figuras que divergiam em quase tudo — até mesmo na crença de Deus. Se para Mahatma Gandhi, Ele estava em todos os lugares, para o ateu Winston Churchill, Ele não estava em lugar nenhum. E se Gandhi tinha o dom de ver a bondade em todos os seres humanos, até mesmo em ditadores como Hitler e Mussolini, Churchill tinha facilidade para detectar a maldade.

Em suma, “Gandhi e Churchill” deve ser consumido em “doses homeopáticas” e sem pressa. Embora o conteúdo seja denso e abrangente, Herman mostra notável destreza, especialmente, para elucidar os assuntos mais complexos que surgem de forma recorrente a cada capítulo. Ao final, o autor conclui que, mesmo com conquistas admiráveis, ambos os homens morreram decepcionados: a Índia que finalmente alcançou a independência não era aquela com que Gandhi sonhara. E Churchill viveu o suficiente para ver o gradual desmanche do Império Britânico que, apesar da vitória na Segunda Guerra Mundial, não foi preservado da forma que ele esperava.

Cotação: Ótimo.

* Gabriel Zorzetto é jornalista

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