Trauma da ocupação israelense é tema central da literatura palestina, que ganha espaço no Brasil

Produção literária da região se move entre a herança lírica árabe e a urgência de falar sobre identidade nacional

Por — São Paulo


O escritor Ghassan Kanafani, maior nome da literatura palestina Reprodução

“Quando a guerra terminar/ vou levar você a um restaurante luxuoso/ sem ter medo da morte/ e vou lhe comprar um café”, promete o poeta Ahmad Assuq, nascido em Gaza, em 1999. “O mundo será testemunha de que estávamos juntos sob o bombardeio”, continua o poema. Enclave palestino onde já morreram pelo menos oito mil pessoas após o início dos bombardeios que se seguiram aos ataques terroristas do Hamas contra Israel, em 7 de outubro, que mataram 1.400, Gaza também é a “terra da poesia”. É o que diz o título de uma coletânea de 17 poetas gazenses organizada por Muhammad Taysir e descrita como “testemunho da vida palpitante e em curso nas mazelas dos tempos de guerra” pelos tradutores brasileiros Safa Jubran e Michel Sleiman.

“Gaza, terra da poesia” foi lançada no Brasil no ano passado pela Tabla e se destaca em meio a uma pequena (porém vigorosa) safra de literatura palestina que tem chegado ao país. Se romancistas israelenses (Amós Oz, A.B Yehoshua, David Grossman) já consolidaram há tempos seu prestígio por aqui, livros de palestinos sempre foram raros no país. Uma exceção é o ensaísta Edward Said (1935-2003), maior intelectual palestino do século XX, autor de “O orientalismo”.

A literatura palestina só encontrou uma casa brasileira com a fundação da Tabla, em 2016. A editora, especializada na literatura do Oriente Médio e do Norte da África, publica os dois maiores escritores palestinos: o prosador Ghassan Kanafani (morto, em 1972, aos 36 anos, pelo serviço secreto israelense) e o poeta Mahmud Darwich (1941-2008), autor da Declaração de Independência da Palestina. Completa o catálogo o libanês Elias Khoury, defensor aguerrido dos palestinos.

Dor explícita

Na trilogia “Crianças do gueto” , Khoury examina a constituição da memória coletiva após a fundação do Estado de Israel — ou Nakba —, que resultou na expulsão de mais de 750 mil palestinos de seus territórios. O tema, que perpassa toda a literatura palestina, é revisitado por Adania Shibli no romance “Detalhe menor” (Todavia). O livro seria premiado na Feira do Livro de Frankfurt, maior encontro do mercado editorial do mundo, realizado semana passada, mas o evento foi cancelado após os ataques do Hamas. Em carta aberta, escritores e editores do mundo todo acusaram a organização de “silenciar” vozes palestinas.

A escritora chilena Lina Meruane aponta Shibli como um dos nomes que têm se dedicado a “narrar com eloquência e precisão a história da nação, desde os eventos e consequências da Nakba até os dias de hoje”.

— Esses textos, que narram eventos históricos, tendem a ser muito explícitos em seu compromisso com a causa. O problema é que artistas palestinos se veem obrigados a falar da dor para serem traduzidos e publicados, porque é isso que interessa ao leitor — diz a autora de “Tornar-se palestina”, ensaio sobre a linguagem usada para retratar o conflito. — Autores mais jovens estão compreensivelmente cansados dessa obrigação, que é inevitável para que o tema não desapareça.

Antes da Nakba, a produção literária palestina era sobretudo poética e tematizava a relação com a terra. A dispersão dos palestinos após a fundação de Israel paralisou a pena dos escritores até o início dos anos 1960, quando Kanafani propôs uma literatura capaz de despertar a luta. Em 1963, publicou “Homens ao sol”, novela sufocante e de beleza ímpar, que narra a malfadada travessia de palestinos pelo deserto até o Kuwait após a Nakba. Essa literatura revolucionária proliferou no exílio em que viviam escritores como Mahmud Darwich e o próprio Kanafani. Até hoje, boa parte da literatura palestina é escrita na diáspora, por nomes como Etaf Rum.

A historiadora Mariane Soares explica que, à medida que a ocupação israelense avança (com a construção de assentamentos na Cisjordânia, por exemplo), o trauma da Nakba é revivido e, consequentemente, reelaborado por novas gerações de autores.

— A partir dos anos 2000, sem perspectivas para a resolução do conflito, escritores como Ibtisam Azem e cineastas como Larissa Sansour começaram a apostar na ficção científica, na distopia e no absurdo para falar das alternativas de futuro — afirma.

Doutora em Teoria e História pela Unicamp, Muna Omran ressalta o “sofisticado senso de ironia” dos autores palestinos e afirma que, apesar de seu comprometimento político, eles não se rebaixaram à literatura panfletária. Inicialmente inspirada na “literatura engajada” do filósofo francês Jean Paul-Sartre (1905-1980) e fiel à cartilha realista, a produção palestina se rendeu às inovações modernistas após os anos 1960. Um exemplo é a poeta Fadwa Touqan (1917-2003), que começou apegada às métricas e depois abraçou o verso livre e as metáforas.

— É uma literatura de resistência muito refinada. Os escritores palestinos aproveitam a riqueza lexical da língua árabe e lapidam as palavras para falar sobre questões existenciais, identidade e a ocupação— diz Muna.

Tradições diversas

O escritor Milton Hatoum relaciona o vigor da poesia palestina à geografia. Espremidos entre Oriente e Ocidente, os versejadores da região reciclam tradições diversas: a literatura árabe, a poesia francesa do século XIX (Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud), o cânone modernista. Hatoum elogia o “ritmo ondulante” da poesia em prosa de Mahmud Darwich, que, na falta de traduções brasileiras, ele leu em edições estrangeiras por anos.

— Quando descreve o cerco israelense a Beirute, em 1982, em “Memória para o esquecimento”, Darwich cita autores árabes e europeus enquanto fala de amor, da memória, de futebol — lembra o autor de “Dois irmãos”. — Mas o que está no centro de sua poesia, e de toda a poesia palestina, é o exílio.

Autor das graphic novels “Palestina” e “Notas sobre Gaza”, que retratam o conflito com os israelenses, o americano Joe Sacco dá um exemplo do valor que os palestinos dão à poesia.

— Quando eu estava em Gaza, não era incomum ouvir alguém declamando um verso e outra pessoa responder declamando o verso seguinte do poema — conta o autor.

Mais recente Próxima Flip 2023: 'Sou grata à lei francesa sobre aborto que me considerou uma pessoa e não uma máquina de fazer bebês', diz Colombe Schneck