O escritor israelense Iddo Gefen e seu amigo Sagi Golan ainda estavam na escola quando viram um nome pouco comum em Tel Aviv grafado na lousa: Luciano. Quem poderia ser aquele Luciano? Os dois começaram a imaginar alguém com bigode, carismático e atrapalhado. Inventaram até um jogo. Na dúvida, se perguntavam: “O que Luciano faria?”
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Em agosto, Gefen, hoje com 31 anos, lançou em Israel o romance “A fábrica de nuvens da Sra. Lilienblum” (ainda sem edição brasileira), sobre uma mulher que inventa uma máquina de fazer chover para amenizar a crise climática. Mas um outro personagem se destaca na história: Luciano, um general trambiqueiro.
— Dediquei o livro “a Luciano, pelas aventuras que não podemos comentar”. Era uma dedicatória para o meu amigo Sagi, por tudo o que vivemos juntos — diz por videochamada de Nova York, onde vive, o escritor inédito no Brasil e que participará do 2º Festival Literário do Museu Judaico (FliMUJ) de São Paulo, entre 30 de novembro e 3 de dezembro.
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Sagi Golan foi uma das vítimas decorrentes dos ataques do Hamas, que mataram 1.400 pessoas em Israel em 7 de outubro. Ele era reservista do exército israelense e, quando soube da invasão, foi para o sul do país combater terroristas e salvar reféns. Estava com o casamento marcado, e acabou assassinado. No dia 25 de outubro, Gefen recebeu o Prêmio Sami Rohr de Literatura Judaica por seu livro de estreia, “A praia de Jerusalém”. Na cerimônia, aproveitou para honrar a memória do amigo morto.
— Muita gente já escreveu sobre como Sagi morreu tentando libertar reféns. Mas ele sempre foi muito mais do que um soldado — conta ele. — Sagi era muito engraçado e estava sempre fazendo trabalho voluntário.
Especialista em memória
O FliMUJ receberá autores como a peruana Gabriela Wiener e o americano Lewis R. Gordon, além de brasileiros como Cíntia Moscovich e Jacques Fux. As discussões vão girar em torno da memória e do direito de lembrar e de esquecer. A pergunta que condensa o tema — “E se eu me esquecer de ti?” — foi inspirada em trecho do livro dos Salmos. “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita perca sua destreza. E que minha língua fique grudada em meu palato. Se eu não me lembrar de ti”, diz o texto bíblico.
A memória é um assunto caro a Gefen. Especialista em psicologia cognitiva e neurociência, ele pesquisa memória e tomada de decisões na Universidade Columbia, nos Estados Unidos. O conto que dá nome a seu livro de estreia, “A praia de Jerusalém”, é sobre uma mulher com Alzheimer que convence o marido a ir à procura do mar na cidade sagrada (que fica a 50km do litoral). Um leitor escreveu para Gefen contando que seu pai, que também tem Alzheimer, caiu no choro quando viu o livro. Aquele título ressuscitou suas memórias. Quando jovem, ele fora geólogo e adorava contar que, num passado distante, o mar cobria os montes de Jerusalém.
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Para Gefen, a superação da tragédia de 7 outubro também passa pela memória.
— Neste momento, não precisamos de vingança, mas de compaixão. Tanto pelos israelenses, pois o que aconteceu nos fez recordar os piores momentos da história judaica, quanto pelos palestinos inocentes em Gaza — diz o escritor. — A compaixão vem de honrar as memórias das pessoas. Inclusive daquelas que não fazem parte da nossa memória coletiva. Só assim vamos entender como os outros percebem o que está acontecendo e poderemos seguir em frente.
Gefen também se interessa por sonhos. No FliMUJ, ele e o psicanalista Christian Dunker tentarão responder à pergunta “Ainda dá para sonhar?”. Após uma operação israelense em Gaza em maio de 2021, Gefen começou a coletar sonhos de moradores de Israel e dos territórios palestinos. Uma israelense contou ter sonhado estar num concerto quando o Hamas anunciou que iria desligar o céu e tudo escureceu. Uma palestina sonhou que era enviada como espiã a Tel Aviv e se apaixonava por um judeu.
— A maioria dos sonhos era triste, mas havia alguns engraçados, como o de um palestino que sonhou que ia se divertir em Tel Aviv. O sonho é uma mistura de memória e imaginação que permite coisas que a realidade não permite, como encontrar pessoas do outro lado. Ou os mortos — conta. — Pensei em retomar esse projeto agora, mas não consigo. Tudo é muito difícil. Tenho pesadelos recorrentes em que o Hamas invade a minha casa.
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Admirador das escritoras brasileiras Clarice Lispector e Andréa del Fuego, Gefen já foi descrito por críticos como “semissurealista”. Apesar de sua preferência pela ficção inventiva, ele sabe que nenhum escritor israelense ou palestino pode ignorar o barulho da realidade. Com o tempo, ele concluiu que, de um jeito ou de outro, a literatura sempre será política.
—Quando comecei a publicar, dizia que meus contos não tinham mensagem nenhuma. Hoje, penso diferente. Um livro não precisa dizer “sou contra Netanyahu” para ser político. A literatura é política ao criar complexidade, dar nova forma às ideias e inventar uma linguagem que contemple o mundo do outro, mesmo que eu não concorde com ele. É isso que gera compaixão — afirma o israelense. — As redes sociais e os populistas simplificam as ideias e destituem o outro de humanidade. Já a literatura expande a realidade. Nesse sentido, os escritores são mais relevantes do que os políticos.
Futuro depende da paz
Gefen repete que o assassinato de seu amigo Sadi Golan na barbárie de 7 de outubro foi a pior coisa que já lhe aconteceu. Ele insiste na libertação dos reféns em poder do Hamas (“não há futuro na região com um grupo terrorista no poder”, afirma) e na proteção aos civis palestinos em Gaza.
— Não é um jogo de futebol, é possível ser a favor das pessoas dos dois lados — esclarece. — Não acho que haja diálogo possível com terroristas, mas a imagem da refém Yocheved Lifshitz (de 85 anos, esposa do pacifista Oded Lifshitz) estendendo a mão a um militante do Hamas quando foi libertada impressiona. Ao ser capaz de reconhecer a humanidade de todos, ela mostra que só aqueles que lutam pela paz podem nos conduzir ao futuro.