Crítica: 'O Bem-Amado', de Dias Gomes, ganha adaptação para os quadrinhos

Ilustrador Eloar Guazzelli já havia ajustado outro título do escritor, “O pagador de promessas”, além de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, entre outras obras importantes da literatura brasileira

Por — Rio de Janeiro


Eloar Guazzelli adapta para os quadrinhos 'O Bem-Amado' Divulgação

Sátira contundente que expõe contradições do cotidiano social e político do Brasil, “O Bem-Amado” é um dos textos mais marcantes da longa trajetória do dramaturgo e novelista baiano Dias Gomes (1922-1999), que também foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).

A saga maquiavélica de Odorico Paraguaçu, prefeito corrupto da fictícia cidade de Sucupira, foi originalmente escrita como uma peça teatral em 1962 e virou tema da primeira novela em cores do Brasil, em 1973, com Paulo Gracindo no papel do irreverente protagonista, além de um elenco com nomes históricos da TV brasileira, como Lima Duarte, Sandra Bréa, Jardel Filho e Emiliano Queiroz, entre outros.

A telenovela também gerou uma série, exibida entre 1980 e 1984. Décadas depois, o político que ilude o povo com seus discursos verborrágicos foi encarnado por Marco Nanini no filme de 2010 dirigido por Guel Arraes. É uma história que, assim, obteve larga popularidade em todo o país.

“O Bem-Amado” acaba de ganhar uma nova versão no formato graphic novel pela editora Nova Fronteira, sob os traços do talentoso ilustrador gaúcho Eloar Guazzelli, que já havia adaptado outro título seminal do escritor, “O pagador de promessas”, além de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, entre outras obras importantes da literatura brasileira.

Ciente do desafio de adaptar um sucesso da cultura brasileira, Guazzelli soube extrair os diálogos essenciais da trama de Dias Gomes e valorizá-los com desenhos poderosos que, em alguns casos, dispensam qualquer interlocução e avançam a narrativa por si só, oferecendo uma leitura ágil e lúdica.

Perfis farsescos

Diferentemente das adaptações para televisão e cinema, a HQ inédita adota uma aparência menos escrachada e mais singela, com cores pouco vibrantes e ilustrações que conferem perfis farsescos para as figuras irreverentes que imortalizaram a obra: as Irmãs Cajazeiras, o secretário Dirceu Borboleta, o cangaceiro Zeca Diabo, o jornalista Neco Pedreira, entre outros — além, claro, do protagonista.

Tal abordagem atribui um aspecto (ainda) mais sinistro ao projeto fúnebre de Odorico, que desvia verbas para viabilizar a construção de um cemitério na pequenina cidade, mas vê a inauguração arruinada por um simples motivo: a falta de defuntos. A partir daí, o enredo desenvolve os podres da politicagem brasileira, que usa a máquina pública em prol dos interesses pessoais e ignora as necessidades reais da população.

Crítica social

Projetada no modelo de revista e ostentando um prefácio do cantor Zeca Baleiro (responsável pelas composições de uma montagem recente da peça), a versão em quadrinhos tenta se descolar das adaptações audiovisuais ao empregar uma linguagem que contém claras referências ao gênero de faroeste, abusando dos planos fechados que focam, principalmente, nos olhos amendoados das personagens. Esse recurso confere suspense à crítica social que é capaz de comprimir todo o espírito do Brasil dentro do mundo imaginário de Sucupira — cujos absurdos estão cada vez mais próximos da realidade, enaltecendo a bola de cristal de Dias Gomes.

Enfim, como diria Odorico aos seus concidadãos, “vamos botar de lado os entretanto e partir logo pros finalmente”: é claro que a experiência de ler “O Bem-Amado” em HQ não se compara com a de se consumir o riquíssimo conteúdo original. Esta nova versão, porém, pode ser muito útil para iniciar jovens leitores e ajudar na introdução de clássicos da literatura nacional a uma nova geração.

‘O Bem-Amado’. Bom.

Autor: Dias Gomes.

Ilustrações: Eloar Guazzelli.

Editora: Nova Fronteira.

Páginas: 88.

Preço: R$ 79,90.

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