Livro mostra como Graciliano Ramos combateu o racismo na política e na literatura

Ex-prefeito de Palmeira dos Índios questionou teses que afirmavam a inferioridade de negros, indígenas e miscigenados; como gestor público, fez servidores comparecerem ao trabalho e encheu escolas de crianças pobres

Por — São Paulo


O escritor Graciliano Ramos, que foi prefeito de Palmeira dos Índios e comandou a Instrução Pública em Alagoas Arquivo

Em 1933, quando publicou seu primeiro romance, “Caetés” (que dormira uma década na gaveta), Graciliano Ramos já era conhecido por seu jeito com as palavras. Quatro anos antes, o então prefeito de Palmeira dos Índios (AL) divulgara relatórios de sua gestão no Diário Oficial de Alagoas. Seu estilo nada burocrático surpreendeu. O Jornal do Brasil chamou-o de “grande humorista”. A folha carioca A Manhã disse: “Em gênero de bom humor não se pode desejar melhor... Eis Mark Twain metido num chinelo” (referência ao satirista americano). Mas não era só o sarcasmo que se destacava nos relatórios (que serão reeditados em abril pela Record). O Mark Twain das Alagoas era um gestor público competente e pioneiro — e que sabia transpor suas lutas políticas para a ficção, como atesta o livro “Graciliano: romancista, homem público, antirracista” (Edições Sesc), de Edilson Dias de Moura.

Graciliano construiu brilhante carreira política alagoana. Em 1928, elegeu-se prefeito de Palmeira dos Índios; em 1931, assumiu a Imprensa Oficial de Alagoas e, entre 1933 e 1936, foi diretor da Instrução Pública. Na prefeitura, saneou as contas públicas, obrigou os servidores a comparecerem ao trabalho (o que antes nem sempre acontecia) e abriu estradas, açudes e aterros.

Contra trabalho precário

A imprensa noticiava o “momento de ouro” da cidade. O governador Álvaro Paes não demorou a convocá-lo para a equipe. E, como constata Moura no livro, os desafios da administração estadual — precariedade do trabalho no campo, crise dos velhos latifúndios, êxodo rural, persistência do racismo científico — se tornaram motes dos principais romances do autor: “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas secas” (1938).

Em “São Bernardo”, o escritor apontou o dedo para os proprietários rurais que investiam na mecanização do campo mas se recusavam a modernizar as relações trabalhistas e abandonar práticas escravocratas. O narrador do romance, o fazendeiro Paulo Honório, opunha-se ao ensino técnico. “Metam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver colheita”, ironiza ele. Graciliano acreditava que a qualificação da mão de obra rural ajudaria a frear a migração para a cidades, retratada em “Vidas secas”.

A preocupação do escritor com a educação já aparecia em “Caetés”. No romance, um promotor é premiado com a presidência da Junta Escolar de Palmeira dos Índios por ter ajudado a inocentar o jagunço de um chefe político da região. “O governo, descurando a maior necessidade do povo, entrega a sua instrução a criaturas tão ineptas que mal poderiam frequentar o primeiro ano de um estabelecimento de ensino”, escrevera Graciliano na imprensa no início dos anos 1920, quando redigiu o livro.

Combate ao nepotismo

À frente da educação alagoana, o escritor proibiu cargos “de amizade” e o castigo físicos dos estudantes e instituiu concurso público para o magistério. Instituiu a merenda e distribuiu material escolar, roupas e calçados (crianças descalças eram impedidas de assistir às aulas). Triplicou o número de alunos nas escolas.

Também combateu teses racistas que à época tinham estatuto de ciência e afirmavam a inferioridade de pessoas negras, indígenas e miscigenadas, que seriam mais propensas ao crime. Em “Angústia”, Luís da Silva, aristocrata arruinado, culpa ramos negros e caboclos de sua árvore genealógica por sua “vida amarga” e criminosa. Mas o romance mostra que sua miséria era consequência do colapso da antiga ordem agrária, patriarcal e escravista, que tanto beneficiou seus antepassados brancos. Graciliano defendera na imprensa que “a ignorância” era o que arrastava “a multidão sertaneja ao abismo tenebroso do crime”. E que a debilidade das crianças pobres nada tinha a ver com a raça, mas com a falta de comida.

— Quando é nomeado diretor da Instrução Pública, ele traz uma professora negra do interior, a Dona Irene, e a promove a diretora. Junto com ela, faz uma campanha para incentivar a matrícula de nas escolas, que se enchem de crianças pobres e negras. Depois, usa estatísticas para mostrar que essas crianças tinham boas notas e justificar os investimentos — explica Edilson Dias de Moura. — O antirracismo estava no cerne de seu antifascismo.

Preso em 1936 pela ditadura do Estado Novo, Graciliano escreve uma carta a Getúlio Vargas afirmando que sua gestão do ensino alagoano o condenara ao cárcere. “Lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma (...). E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos”, escreveu, com a ironia de sempre.

Em suas “Memórias do cárcere”, o Mark Twain das Alagoas destacou sua experiência à frente da Instrução Pública e a oposição que sofrera. Recordou que, em determinada escola, quatro crianças “retintas” arrebanhadas nas campanhas de matrícula “haviam obtido as melhores notas nos últimos exames”. “Que nos dirão os racistas, D. Irene?”, provocou.

Serviço:

‘Graciliano: romancista, homem público, antirracista’

Autor: Edilson Dias de Moura. Editora: Edições Sesc. Páginas: 388. Preço: R$ 85.

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