Entrevista: Bernardine Evaristo, vencedora do Booker Prize, fala sobre novo romance lançado no Brasil: ‘Gosto de desafiar o status quo’

'Sr. Loverman', romance da britânica em que protagonista é gay, negro e imigrante tem tradução brasileira dez anos após publicação em inglês: ‘Vivemos em um mundo onde tudo é político, quer as pessoas admitam ou não'

Por — Rio de Janeiro


Bernardine Evaristo, escritora britânica vencedora do Booker Prize em 2019 por 'Garota, mulher, outra' Divulgação/Jennie Scott

Bernardine Evaristo inicia a entrevista, por vídeo, dispensando qualquer formalidade facilmente associada a uma autora do seu status na literatura em língua inglesa. “Me chame de Bernie”, diz ela, que, em 2019, venceu o Booker Prize com o inventivo “Garota, mulher, outra”, caleidoscópico romance com 12 mulheres negras como protagonistas.

Bernie (já que ela insiste) lança no Brasil “Sr. Loverman” (Ed. Companhia das Letras), em que acompanha Barrington, um imigrante caribenho que fez fortuna em Londres, onde mantém um relacionamento homoafetivo extraconjugal por décadas até que, aos 74 anos, decide terminar o casamento de 50 para, finalmente, viver seu grande amor. Originalmente publicado há 10 anos e portanto anterior à obra mais famosa da autora, “Sr. Loverman” já contém os elementos que deram a ela prêmios e prestígio: o uso de versos livres, múltiplos narradores e uma espécie de ficcionalização da interseccionalidade, com gênero, raça, classe, orientação sexual e identidade dando complexidade às relações sociais.

— Na época, o Barrington me pareceu perfeito para explorar a homofobia a partir de uma perspectiva negra. Ele tem 74 anos, não é o clubber de 25 que a maioria compreende como um homossexual. É um cara de uma geração mais velha que é gay e que, por isso, precisa lutar muito — diz ela. — Ele luta, inclusive, contra as prisões que criou para si. Por que é tão difícil para ele e a mulher saírem de um casamento tão infeliz, mesmo vivendo em Londres, onde ela é livre para se divorciar e ele para viver seu amor? — questiona.

Esse encontro entre a macropolítica e a política da vida cotidiana é uma marca da literatura de Bernie que ela faz questão de ressaltar, sem temer que seu trabalho seja rotulado como político, negro ou feminista. Afinal, ter um protagonista imigrante, gay e negro levanta quase que automaticamente questões sobre o modo como a sociedade o vê, como ele se identifica e de onde vêm seus antepassados.

— Sou uma escritora que gosta de desafiar o status quo. — afirma. — Vivemos em um mundo, contexto e estruturas nos quais tudo é político, quer as pessoas admitam isso ou não. Uma ficção política não é apenas a que lida com os grandes temas sociais do nosso tempo, é também a que trata do modo como as pessoas se movem nesse mundo, contexto e estruturas. Não escrevo pensando nisso o tempo todo, sou conduzida pela história, mas me interessa explorar as dinâmicas de poder, especialmente as existentes no Reino Unido e na diáspora africana — diz.

'Sr. Loverman', romance da autora britânica Bernardine Evaristo editado no Brasil pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação

Conquistas de #MeToo e Black Lives Matter

Das dinâmicas de poder Bernie entende. Afinal, vive no país que colocou em prática o maior projeto colonial do século XIX, onde uma das casas do Parlamento é reservada à aristocracia (a Câmara dos Lordes) e onde o governo conservador propõe enviar imigrantes para Ruanda, pagando ao país africano para recebê-los (a chamada "Parceira de Desenvolvimento Migratório e Econômico" prevê que imigrantes considerados ilegais pelo britânicos sejam deportados para Ruanda, tendo os custos de seu estabelecimento financiados pelo Reino Unido, que também investiria 120 milhões de libras no país africano).

— Os conservadores estão no poder no Reino Unido há 13 anos, o que é muito tempo. Ficaram mais corruptos e extremistas, com ideias imorais, ridículas. Ninguém deve ser enviado a Ruanda, que tem registros terríveis de violações dos direitos humanos. O Brexit foi uma missão suicida, e a verdade é que precisamos de imigrantes nesse país.

Imigrantes como os antepassados de Bernie, vindos da Nigéria (sua mãe é uma inglesa branca e o pai um nigeriano), incluindo um avô iorubá aguda, que deixou o Brasil para retornar ao país natal.

— Quando dizem que o meu trabalho é negro, não é demérito. É uma afirmação desse lugar poderoso do qual eu escrevo. Mas há autores brancos escrevendo sobre identidade branca e não se diz o mesmo deles. Se o que eu faço é político, o que eles fazem também é. Só que quando você estudou em Oxford ou Cambridge não precisa se afirmar porque já é parte do establishment. A maioria de nós tem de lutar — afirma.

De fato, Bernie já tinha 60 anos e sete livros publicados quando dividiu o Booker Prize com Margaret Atwood, em 2019. Foi a primeira autora negra contemplada pelo mais prestigioso prêmio da literarura em língua inglesa, assim como em 2022 ela se tornou a primeira pessoa não branca e não educada em Oxford ou Cambridge a presidir a Real Sociedade de Literatura em um mandato que segue até 2026.

— O prêmio mudou o meu status. Sem ele, não teria sido escolhida para a Real Sociedade. A literatura britânica sempre enfatizou escritores jovens, fotogênicos para as capas de revistas, mas isso mudou.

Uma conquista de #MeToo e Black Lives Matter?

— Mulheres publicando aos 60 anos é certamente pós #MeToo. Isso é maravilhoso e nos fala também sobre o tempo necessário para um autor encontrar sua literatura, especialmente as mulheres em meio a tantos obstáculos. E pensar que Toni Morrison publicar seu primeiro livro aos 39 me pareceu tardio...

“Sr. Loverman”.

Autora: Bernardine Evaristo. Tradutora: Camila von Holdefer. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 328. Preço: R$ 89,90.

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