Caso Rushdie: 'Qualquer proibição é um ato de intolerância', diz Ricardo Lísias

Escritor paulistano diz que um romance jamais porta em sua essência um discurso de ódio simplesmente porque ele não tem uma essência intrínseca

Por Ricardo Lísias, Especial Para O GLOBO


O escritor Salman Rushdie JOEL SAGET/AFP

Antes de tudo, vale dizer que “Os versos satânicos” é um romance divertido. Duas figuras meio amalucadas vão parar, depois de um incidente estranho e de uma intervenção sobrenatural, na Inglaterra. Dali em diante passam a protagonizar uma espécie de embate em que contradições vão se sucedendo enquanto lidam com inúmeros dilemas. Um ano depois de o livro ser publicado, o aiatolá Khomeini, então autoridade máxima do Irã e referência religiosa, lançou uma fatwa: condenou o autor, Salman Rushdie, à morte, pois enxergou um desrespeito ao Islamismo em algumas passagens. Rushdie precisou de proteção policial e passou alguns anos escondido, ainda que continuasse publicando livros sempre interessantes. Entre esses, destaco “Joseph Anton”, em que ele descreve, em tom analítico, o que viveu depois da condenação.

Um homem mostra a edição de jornais iranianos com o título da primeira página em farsi: "Faca no pescoço de Salman Rushdie" — Foto: AFP

Depois de 32 anos, um homem resolveu concretizar a condenação de Khomeini. Nessas três décadas o mundo piorou muito: agora são inúmeros os líderes políticos que incitam a violência, sendo que o principal deles incentivou a invasão à sede do Poder Legislativo no mesmo país onde o escritor foi esfaqueado.

Um trabalho artístico pode de fato agredir uma religião ou qualquer outro grupo? Como exige uma interpretação (e desde já está claro que quem a constrói é o público), parece hoje simples concluir que as obras tenham significados múltiplos. Muita gente (eu, por exemplo) acredita que uma obra de ficção tem tantos sentidos quanto seus leitores encontrarem. Portanto, o que para alguns é agressão para outros pode ser elogio. Agora, indo para o caso concreto: se quem esbraveja contra uma determinada religião é uma personagem estúpida, é bem possível que se trate de um elogio a essa religião, e não o contrário.

Um romance jamais porta em sua essência um discurso de ódio simplesmente porque ele não tem uma essência intrínseca. Quem a cria é o leitor. Uma obra artística nunca agride ninguém. Por isso, a liberdade de criação precisa ser absoluta e não pode ser coibida nem por autoridades políticas, judiciais ou religiosas. Qualquer proibição é um ato de intolerância. O que precisamos observar, com muita urgência, é o crescimento de grupos que estão construindo seus sentidos (portanto o significado da própria vida) a partir do ódio. Essa gente é capaz de todo tipo de violência — inclusive tentar matar um escritor. Tomara que não consigam.

Ricardo Lísias é escritor, autor de, entre outros, “Uma dor perfeita” (Alfaguara)

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