Arquivo traz o mais significativo tesouro de Ernest Hemingway em 60 anos

Coleção com textos inéditos e centenas de fotos, cartas e objetos pessoais foi guardada pelo próprio escritor em seu bar preferido, nos EUA

Por Robert K. Elder, The New York Times — Nova York


Coleção: Hemingway como correspondente durante a Guerra Civil Espanhola Arquivo/NYT

Num conto de três páginas sem título, Ernest Hemingway escala F. Scott Fitzgerald como um pugilista que sai do ringue desfigurado, mas finalmente vitorioso. Vestido num uniforme da Cruz Vermelha e sorrindo para a câmera, Hemingway, aos 18 anos, se junta a soldados italianos numa trincheira, durante a Primeira Guerra Mundial, poucos dias antes de ser ferido por um morteiro e tiros de metralhadora, experiência que o inspirou a escrever “Adeus às armas”. Em outro caderno, numa anotação de 1926, lê-se uma reflexão de três páginas sobre morte ne suicídio — 35 anos antes de o escritor tirar a própria vida.

Mais significativo tesouro do escritor nos últimos 60 anos, os itens integram um arquivo recentemente aberto na Universidade da Pensilvânia, nos EUA. Batizado como “Coleção Toby e Betty Bruce de Ernest Hemingway”, acolhe quatro contos inéditos, manuscritos, centenas de fotografias, correspondência e caixas de objetos pessoais que, segundo especialistas, devem remodelar a percepção pública e acadêmica do artista. Presidente da Hemingway Foundation & Society, Carl Eby afirma que ficou “verdadeiramente chocado” com a abundância do material.

Hemingway como soldado na 1ª Guerra Mundial — Foto: Arquivo/NYT

— Hemingway reinventou a prosa americana moderna e o conto. Seu melhor trabalho é profundamente comovente e rico em significados e complexidades psicológicas — ressalta Eby, professor na Universidade Appalachian, nos EUA. — Como foi mitificado durante a própria vida, sua imagem pública mantém até hoje, para bem ou mal, todo esse poder mítico. O material pode gerar novos insights para os próximos anos.

Por décadas, a maioria dos estudiosos de Hemingway só conseguia salivar ao ouvir sobre a tal coleção, incerta de seu conteúdo ou localização. O que todos sabiam era que, em 1939, depois que seu segundo casamento chegou ao fim, Hemingway — um notório acumulador — deixou seus pertences no depósito do Sloppy Joe’s Bar, seu lugar favorito em Key West, na Flórida. E nunca voltou para buscá-los. Após a morte dele, sua quarta esposa, Mary Welsh Hemingway, vasculhou o material, guardou o que quis e deu o resto para amigos de longa data do marido, o casal Betty e Toby Bruce.

O tesouro passou décadas sem catalogação em caixas de papelão e recipientes de armazenamento de munição, sobrevivendo a furacões e inundações. Anos atrás, o filho de Betty e Toby, Benjamin Bruce e um historiador local, Brewster Chamberlin, começaram a criar um inventário do material em parceria com Sandra Spanier, estudiosa de Hemingway. Entre bilhetes de touradas, cheques, recortes de jornais e cartas a advogados, familiares e amigos, como o escritor John Dos Passos e os artistas Joan Miró e Waldo Peirce, o trio achou um caderno manchado. Estava lá o primeiro conto conhecido de Hemingway , sobre uma viagem fictícia à Irlanda, escrito quando ele tinha 10 anos.

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Quando a descoberta foi revelada em 2017, Bruce expressou o desejo de dar à coleção um lar seguro e permanente. Editora do projeto, Spanier também pensava assim. Nos cinco anos seguintes, ela trabalhou para levar o arquivo para a Universidade da Pensivâlnia, que o comprou em outubro de 2021, por uma quantia não revelada.

O arquivo abrange diversos momentos da vida de Hemingway. Numa caixa, rotulada “Tesouros do bebê de Ernest” com a caligrafia de sua mãe, está uma mecha de seu cabelo, suas botinhas de couro e a cabeça de seu brinquedo favorito, “Cachorrinho”, com o qual ele dormiu até os 6 anos. Em outra pasta, um telegrama pede a Toby Bruce que ele carregue o caixão em seu funeral.

— Em termos de ser apenas uma fã, me dá calafrios tocar seu uniforme da Primeira Guerra Mundial ou folhear suas cartas — afirma Spanier. — Ao tocar o papel, surge uma conexão elétrica que você obtém pessoalmente.

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