Livro 'Rainhas da noite' perfila travestis mafiosas de São Paulo

'Elas tinham dezenas de apartamentos, andavam de limusine, matavam e mandavam matar’, diz Chico Felitti, autor da obra, que terá adaptação para o audiovisual

Por Eduardo Graça — São Paulo, SP


Andrea de Mayo e seu cachorro, Al Capone Divulgação/ Claudia Guimarães

Nos anos 1980, bodes expiatórios eram buscados para a explosão de casos de HIV no país. Em março de 1987, a Folha de S.Paulo publicou o título “Polícia civil combate a Aids prendendo travestis”. Em uma só noite, 350 foram levadas do Centro de São Paulo para o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). Meses depois, embaixo do Minhocão, Cristiane Jordan, a Cris Negão, decidiu dar um basta ao sofrimento da tortura, da violência sádica e do achaque. Atacou uma viatura que a perseguia: quebrou os vidros e tombou o camburão, para delírio das colegas. Se tornou, escreve Chico Felitti em “Rainhas da noite”, “o mais próximo que o bairro chegou de ter uma supermulher”.

No livro, o jornalista perfila três controversos personagens da noite paulistana das décadas de 1970 a 2010 sobre os quais o leitor provavelmente jamais ouviu falar: além de Cris, Jacqueline BláBláBlá e Andréa de Mayo. A ignorância não é pecado capital. Passadas no submundo da metrópole, as narrativas são, quase todas, inclusive a explosão de Cris Negão na batalha do Minhocão, de fontes orais.

Jacqueline BláBláBlá Welch, com Kelly Cunha e amigos — Foto: Acervo pessoal de Kelly Cunha

— Elas tinham dezenas de apartamentos, andavam de limusine, matavam e mandavam matar, mas não saíam no jornal nem quando morriam. Nem processadas eram, nem B. O. tinham direito, de tão marginalizadas. E, mesmo assim, exerceram poder, se organizaram como mafiosas e defenderam, cada qual à sua maneira, sua comunidade — diz Felitti.

Com Rodrigo Teixeira

Não há fotos do bordel de luxo que Jacqueline comandou em frente à igreja da Consolação. Ou documentos sobre os anos em que Cris foi vítima de pedofilia, obrigada, adolescente, a se prostituir. Também não existe inquérito algum sobre os assassinatos que Andréa de Mayo, dona da pioneira boite Prohibidu’s, jurava ter cometido. São as versões dadas por centenas de entrevistados — como Kaká di Polly e Miss Biá, matrona das transformistas, vítima da Covid, a quem o livro é dedicado — que prendem os que se dispõem a passear por endereços propositadamente suspeitos.

As três viram na exploração de outras travestis (“as filhas”) o caminho para a realeza, em meio a assassinatos misteriosos, vinganças mesopotâmicas, disputados concursos de boys de pau duro, papelotes de cocaína escondidos em perucas e comoventes ajudas milionárias, com dinheiro nada limpo, a colegas ameaçadas pelos fantasmas da velhice, do esquecimento e da doença.

Os direitos de adaptação do livro foram comprados pelo produtor Rodrigo Teixeira e um babado inevitável é refletir se é possível torcer para protagonistas tão cruéis, inclusive consigo mesmas. E sobre qual o lugar de Jacqueline, Cris e Andréa, todas mortas de forma trágica, na mitologia arco-íris de Essepê.

— As relaciono sem titubear ao orgulho gay. Elas vieram do mais baixo e conquistaram muito, apesar de a sociedade querer tirar tudo delas. Sabe aquele meme “tô cansado de história de gay coitadinho, quero bicha empinando moto e dando tiro”? Esse livro é isso — diz Felitti, que é gay, casado e vive no centro de São Paulo.

Podcasts marginais

Chico Felitti — Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência OGLOBO

Autor, entre outros, do pungente “Ricardo e Vânia”, finalista do Jabuti em 2019, ele escreveu e narrou este ano o podcast “A mulher da casa abandonada”. A série sobre Margarida Bonetti, acusada de manter uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão por duas décadas nos EUA, hoje foragida no Brasil, onde vive em mansão decadente em uma das ruas mais ricas do país, no bairro paulistano de Higienópolis, teve mais de três milhões de downloads.

No próximo dia 4, ele estreia em seu canal no YouTube um novo podcast, fruto de sua investigação de uma seita que aliciou jovens ricos paulistanos. Felitti mantém segredo sobre o nome do podcast, mas adianta que ele surgiu após ouvir os relatos de uma sobrevivente que viveu mil dias sob violência física e psicológica até escapar do cativeiro:

— Me interessam os que estão à margem, os que a gente não enxerga de bate-pronto.

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