Chico Buarque estreia show no Rio com samba, blues e ironia: 'Essa não é minha, é do Paulo Guedes'

Cantor e compositor, que se apresenta com Mônica Salmaso, brincou com comentários sobre autoria de suas canções: 'Na Internet dizem que compro minhas músicas, ia usar teleprompter para o caso de esquecer alguma letra, mas desisti'

Por Silvio Essinger — Rio de Janeiro


Chico Buarque e Monica Salmaso sobem ao palco do Vivo Rio na estreia da turnê 'Que tal um samba?' no Rio de Janeiro Leo Martins

“Que tal um samba?” era o nome do show de Chico Buarque e banda, mais a cantora Monica Salmaso, que estreava sua temporada carioca no Vivo Rio, na chuvosa noite dessa quinta-feira. No entanto, a sensação não foi um samba, mas um blues – o “Blues da bancarrota”, ao longo do qual Chico apresentou a banda e resolveu dizer algumas palavras.

Em confidência marota ao público, ele revelou ter pensado um usar um teleprompter para ler as letras durante o show. Uma péssima ideia, Chico admitia, já que as pessoas poderiam achar que “se eu não sei cantar direito, é porque eu não fiz minhas músicas” – em alusão a acusações, geralmente vindas do campo da extrema-direita, de que ele não teria composto algumas de suas próprias músicas.

Chico Buarque e Monica Salmaso: show no Vivo Rio com ingressos esgotados — Foto: Leo Martins

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— Na internet sai de tudo, mas dizer que eu compro minhas músicas, isso eu não vou permitir! — disse o cantor, para em seguida fazer graça novamente. — Essa música (“Bancarrota blues”) não é minha, é do (ex-ministro da Economia) Paulo Guedes!


Essa leveza, ali transmutada em humor, foi a tônica da aguardada primeira data de “Que tal um samba?” (que estreou em João Pessoa, no dia 6 de setembro do ano passado, e passou por Natal, Curitiba, Belo Horizonte, Fortaleza e Recife) após o fim do governo de Jair Bolsonaro.

Sem grandes falas de Chico (exceto a da “Bancarrota”), mas com um cenário acolhedor, simples, e muita cumplicidade entre ele, os músicos e Monica, o espetáculo marcou o reencontro do artista com seu público, cinco anos após seu último show – cinco anos em que muitas coisas aconteceram na política brasileira, mas sobre as quais preferiu deixar que as canções falassem por ele. 


“Todos juntos somos fortes, não há nada a temer”, cantou Monica Salmaso em “Todos juntos”, do musical “Os Saltimbancos”, com a qual abriu a noite ao lado da banda, ainda sem Chico no palco. Ela batucou um tamborim no samba “Bom tempo” e singrou com maestria e beleza pelos contornos melódicos (e pela poesia) de “Beatriz”, que arrancou aplausos.

Já em “Paratodos”, justamente após a menção na letra a Gal Costa e Erasmo Carlos (falecidos em 2022), eis que surgiu Chico, do fundo do palco, para dividir com ela os vocais da canção.

As palavras do compositor ganharam ainda mais força ao trançar vocais com Monica em canções como “Sinhá”, “Biscate” (um tributo a Gal, que imortalizara a composição) e a camerística “Imagina”.

Sozinho no canto, mais à frente, Chico ressaltou o brilho dos violões de “Choro bandido”, fez o público acompanhá-lo em “Sob medida” e deu a sua interpretação sóbria e carinhosa para “Bastidores” – música feita por ele para a irmã Cristina e consagrada por Cauby Peixoto. Esta última foi a boa surpresa do show ao lado de “Mil perdões”, outro tributo a Gal Costa, dona suprema dessa composição.

Um “Injuriado” com Monica Salmaso de volta abriu caminho para um segundo momento do show, no qual Chico se mostrou contemplativo, a três violões, em “Dois Irmãos” e ainda conseguiu criar um clima festivo com a naturalmente melancólica “Futuros amantes”.

“Tua cantiga” e a tensa “Caravanas” (fundida à antiga “Deus lhe pague”) mostraram o poder do repertório mais recente do compositor, desembocando na novíssima “Que tal um samba?” (com o baixista Jorge Helder fazendo o bandolim de Hamilton de Holanda) – cada palavra mais forte da canção, feita como uma espécie de exorcismo do horror social do Brasil dos últimos anos, foi repetida com gosto pelo público, que lavou a alma em samba ao fim da noite.


Mas ainda tinha o bis, que começou com “Maninha”, dedicada por Chico à irmã Miucha (falecida em 2018, e com quem ele gravou o dueto na versão original da música). Só que nem esse momento de lirismo escapou à sanha do público de botar para fora o seu alívio com a nova direção política do país – ele cantou com força os versos “que um dia ele vai embora / ô, maninha / pra nunca mais voltar” para, em seguida, se entregar ao carnaval de “Noite dos mascarados”.

Na noite de Chico, ele não precisou dizer muito além daquilo que já estava nas canções.

Cotação: Ótimo

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