Aline Midlej: 'Se hoje sou é porque Glória foi e sempre será'

'Glória Maria sempre será a primeira repórter preta da TV brasileira, mas resumi-la a isso seria de uma desonestidade ultrajante. A televisão não seria a mesma se Glória não tivesse existido', escreveu a jornalista da GloboNews

Por Aline Midlej, Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro


Glória Maria Globo/Zé Paulo Cardeal

Se hoje sou é porque Glória foi e sempre será.

Quando a citei como minha grande referência no telejornalismo, numa entrevista recente à Revista Ela, Glória me escreveu agradecendo. Trocamos e nos fortalecemos, como sempre fazem as mulheres pretas que trilham caminhos comuns e, logo, experiências semelhantes. Mas, neste caso, nenhuma trajetória no telejornalismo se aproxima do que ela viveu, superou e entregou com seu talento. Já imaginei um tanto de vezes o que Glória sofreu, sentiu, ao carregar esse peso da cor em espaços que eram inéditos para nós. Transpondo barreiras até então desconhecidas, ainda se fez única no nosso meio.

Glória Maria sempre será a primeira repórter preta da TV brasileira, mas resumi-la a isso seria de uma desonestidade ultrajante. A televisão não seria a mesma se Glória não tivesse existido. E a televisão se tornou algo muito melhor, mais verdadeiro, emocionante e marcante com ela. A existência dela na tela já era uma revolução, mas ela foi tão além, revolucionando linguagem, estilo e presença. Alcançou uma autenticidade que foi se renovando ao longo das décadas. E isso vale também pela forma como lidava com o racismo.

Numa entrevista poucos anos atrás para Marília Gabriela, disse que o preconceito não tem fim, sempre se atualiza: “Hoje (comigo) ele é mais sutil, mais elaborado, porque eu também sou mais elaborada. Então, o preconceito é mais grave porque atinge pontos que não atingia… Na minha idade, o momento que eu estou, você tem certeza absoluta que é uma coisa que você não supera e não se acostuma”. Glória foi superioridade que se impôs pela força da natureza que representava. Levarei comigo o sonho não realizado de uma conversa sem pressa em que começaria perguntando: como você conseguiu atravessar tanta coisa numa época em que não éramos tantas (mas ainda poucas) como hoje?

Nestes dias de despedida de Glória, de tristeza, sim, mas também de celebração dessa trajetória, estamos falando de carisma e competência em doses que, de tão excepcionais, eram capazes de tirar o melhor e o mais surpreendente e espontâneo, de qualquer entrevistado, fosse ele um presidente da República, um monge budista ou uma pessoa em situação de rua. Uma fabulosa contadora de histórias que tornava qualquer história fabulosa.

Glória Maria foi e sempre será uma referência pra além do seu pioneirismo que abriu tantas portas portas. E isso já seria muito. Ela é farol eterno porque foi a melhor de nós. Conseguiu fazer um jornalismo inspirador por mais de cinco décadas. Como repórter, correspondente, apresentadora, nunca foi padrão. Sempre honrou esse ofício imprimindo personalidade e assinatura em qualquer produto.

Tenho certeza que milhares de pessoas, em especial as mulheres pelo Brasil, escolheram o jornalismo ao assistirem Glória Maria na televisão. Mas, para as meninas pretas, Glória representava a possibilidade de ser. E existir. De se expressar e existir nessa expressão.

No pacote jornalístico de Glória não podia faltar espontaneidade. Não importa se a cobertura fosse uma sequestro, o fim de uma guerra ou desfile de carnaval, ela vivia o que falava, sentia o que transmitia. O legado ficará na televisão que seguiremos fazendo, aprimorando, mas se fará presente, principalmente, no coração de cada mulher preta desse país, que quer contar e ser ouvida. Obrigada, Glória.

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