Série sobre o incêndio na boate Kiss reabre debate sobre limites éticos da reconstituição de tragédias

Especialistas alertam que é preciso pensar responsabilidade emocional e social mas evitar a censura em produções ficcionais como 'Todo dia a mesma noite'

Por Eduardo Graça — São Paulo


Série “Todo dia a mesma noite”: exploração do incêndio na boate Kiss para uns, instrumento de pressão por Justiça para outros Divulgação/Guilherme Leporace/Netflix

No universo pulverizado do streaming, “Todo dia a mesma noite” foi a produção mais vista na Netflix no Brasil nos últimos 14 dias e chegou à sexta posição mundo afora na semana de estreia. Em um país amaldiçoado pela impunidade, a série denuncia que ninguém está preso dez anos após o incêndio que tirou a vida de 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Também alerta espectadores que consumiram até ontem mais de 43 milhões de horas de seus cinco episódios para a necessidade de medidas de prevenção e segurança em escolas, shoppings, casas de festas e afins. E, com cenas impactantes, esquenta o debate ético em torno da crescente adaptação dramática de fatos para as telas. Não é pouco.

Três dias após o lançamento da série dirigida por Julia Rezende e produzida pela Morena Filmes, 40 famílias de vítimas e sobreviventes do incêndio anunciaram a contratação da advogada Juliane Korb para um eventual processo. As queixas são as de que a Netflix não os comunicou oficialmente da dramatização, do que veem como “exploração” da tragédia, e do trailer com a cena de corpos no ginásio da cidade.

— Alguns destes pais decidiram à época não fazer o reconhecimento, jamais viram imagens de seus filhos mortos. Em obra de ficção, não era preciso autorização, mas queremos tratar da responsabilidade emocional e social ao se reconstituir uma tragédia — afirma Korb, irmã de um sobrevivente da Kiss.

Parentes de vítimas passaram mal ao ver o trailer. Outros, em tratamento psicológico, também conta a advogada, tiveram retrocesso sensível. As famílias desejam a retirada da cena com o reconhecimento dos corpos do trailer, e que parte do lucro seja destinada ao tratamento de saúde mental de familiares e sobreviventes e ao memorial às vítimas, com custo estimado em R$ 4 milhões.

Legalmente, de acordo com especialistas em direito autoral e adaptação de fatos para o audiovisual, como a advogada Paula Tupinambá, não há amparo claro para os pedidos. Os tribunais reconhecem o chamado direito ao esquecimento. Porém, em decisão do Superior Tribunal de Justiça, frisa a advogada, “ressalvam-se do direito ao esquecimento fatos genuinamente históricos, com o interesse público e social sobrevivendo à passagem do tempo”.

Lei e sociedade

Como, além de se tratar de ficção, não há acusação de erro documental ou aviltamento de reputações, a estratégia do Grupo dos 40, de forma pioneira, é a de questionar a ética e a responsabilidade social da marca.

— A discussão é muito interessante e importante. As leis acompanham a sociedade, e não significa que o que é considerado legal hoje não possa ser considerado ilegal depois — diz Tupinambá.

A advogada lembra ainda que, com o sucesso da série, o debate é acompanhado com atenção pelo mercado. Há expectativa para a adaptação de “O espetáculo mais triste da Terra”, livro de Mauro Ventura sobre o incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, quando pelo menos 503 pessoas morreram.

Nos Estados Unidos, uma das produções que geraram críticas de famílias de vítimas foi “Dahmer: um canibal americano”, adaptação dramática da história do serial killer lançada ano passado, com enorme sucesso, também pela Netflix. Os principais argumentos foram os de que a série aumentara o trauma dos envolvidos e as famílias não tiveram ganho financeiro com o produto. Em nota, a Netflix respondeu à época que o drama de Ryan Murphy centrou na denúncia da impunidade na Justiça americana.

“Dahmer: um canibal americano”: produção foi alvo de críticas de parentes de vítimas do serial killer — Foto: Divulgação/Ser Baffo/Netflix

“Todo dia a mesma noite” reconstitui, com recorte específico também focado na impunidade, o horror da madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando mais de mil pessoas estavam dentro da Kiss, e o uso de fogos de artifício em um show causou um incêndio no local. Vítimas morreram pelas queimaduras e envenenadas por cianeto liberado pela fumaça. Além dos mortos, 636 pessoas ficaram feridas, muitas em estado grave.

A ficção é inspirada no livro de Daniela Arbex, consultora da série. A reportagem foi publicada em 2018, e a jornalista conversou com uma centena de familiares e sobreviventes. No audiovisual, o foco é na história dos quatro pais processados pelo Ministério Público por calúnia e difamação, aspecto curioso e revoltante por se contrapor à morosidade da resolução judicial na investigação do caso.

Eles foram avisados da produção, assim como a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que se manifestou publicamente contra o processo em relação à Netflix. Paulo Carvalho, que inspirou o personagem de Leonardo Medeiros e perdeu um filho na Kiss, vê na série um importante instrumento de pressão por Justiça e preservação de memória.

— Cada dor é vivida e sentida de um modo, esse debate não passa nem pode passar por isso. Destaco que a série faz um recorte específico da história e funciona como prevenção, para que ninguém mais passe pelo que passei— diz.

Decisão estética

Em crítica no GLOBO, a colunista Patrícia Kogut escreveu que o primeiro grande sucesso de público de produção dramática brasileira este ano no streaming “não é fácil de ver”. E destacou que “a produção de alta qualidade, sóbria, escapa das armadilhas do sensacionalismo”.

A jornalista Daniela Arbex frisa que uma de suas funções era zelar para que a história adaptada fosse a mais fiel possível aos fatos:

—É impossível quantificar o ganho social e a urgência desta série. Ela trata da falta de Justiça, que dói tanto quanto a morte, e foca naquilo que liga algumas das maiores tragédias brasileiras, como Mariana, Brumadinho, Ninho do Urubu: a impunidade.

Reservadamente, pessoas próximas à produção de “Todo dia a mesma noite” enfatizam que apenas os pés aparecem nas cenas do reconhecimento das vítimas. A fumaça que dificulta a visualização do incêndio também foi decisão estética, com foco nos sons reveladores do desespero. E que seria impossível tratar da tragédia sem momentos duros.

Por contrato, diretora e produtora só podem falar com a imprensa sobre a série em eventos promovidos pela gigante do streaming. A plataforma negou pedido de entrevista feito pelo GLOBO “por falta de agenda”. A advogada Juliane Korb, por sua vez, conta que entrou duas vezes em contato por telefone com a Netflix e foi informada que o departamento jurídico da empresa retornaria no mesmo dia, sem sucesso.

Na mesma semana em que “Todo dia a mesma noite” foi lançada, o Globoplay estreou o documentário “Boate Kiss — A tragédia de Santa Maria”, do jornalista Marcelo Canellas. Os 40 pais e familiares das vítimas, no entanto, não veem problema com relatos documentais, mas especificamente com o drama, “em que a dor imposta é diferente”.

Juliane Korb conta que, por conta do sucesso da série dramática, familiares têm sido “assediados” por empresas:

— Oferecem parcerias para vender água mineral, boné, camisa. Não estamos pedindo indenização, nem queremos monetizar a dor e a luta por Justiça desses pais. Mas deveríamos ter sido preparados pela Netflix para o que viria. A argumentação de “vê (a série) quem quer” não cabe, pois muitos foram expostos a peças de propaganda e ao trailer. No TikTok, ele foi visto por uma menina que tinha 6 meses quando perdeu o pai no incêndio. Ela deveria ter sido blindada desta exposição.

O escritor e roteirista Marçal Aquino, que assina a adaptação de “Carcereiros”, inspirada no livro de Drauzio Varella de 2012, alerta para o perigo de se alterar obra de ficção a pedidos:

—É inédito no Brasil se insurgir contra o conteúdo de um trailer e buscar estabelecer que gênero pode retratar um fato. Se não há desrespeito às memórias dos personagens, isso é censura. Nem posso imaginar a dor que estas pessoas viveram, mas é importante evitar um precedente perigoso.

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