Em domínio público, obra de Graciliano Ramos é lançada por ao menos 15 editoras e ganha inédito; herdeiros protestam

Novas edições de obras que já venderam 4,5 milhões na Record sairão com textos críticos ou correções feitas pelo próprio autor


Morto em 1953, o escritor Graciliano Ramos está em domínio público desde 1º de janeiro Arte de Gustavo Amaral sobre foto de Divulgação

Morto em 1953, Graciliano Ramos está em domínio público desde o dia 1º, ou seja, a partir de agora, qualquer um pode editar a sua obra (ou adaptá-la para outras mídias) sem autorização e sem remunerar os herdeiros. Será difícil encontrar uma editora que não queira. Nos 48 anos em que o Grupo Editorial Record deteve seus direitos, os livros do escritor alagoano venderam 4,5 milhões de exemplares (dois milhões apenas com a sua obra-prima,“Vidas secas”).

É de se esperar, portanto, que as edições de seus títulos se multipliquem nas livrarias, como aconteceu em 2021 com George Orwell, outro autor campeão de vendas. Um levantamento — realizado pelo tradutor Daniel Dago, conhecido por anunciar lançamentos nas redes sociais, e complementado pelo GLOBO — indica que, além de uma coleção de e-books distribuída pela Amazon, ao menos 15 editoras e uma plataforma de audiolivros (Livro Falante) já planejam lançar obras do Velho Graça. Mais de uma dezena de novas edições de “Vidas secas” deve chegar às livrarias.

— Graciliano é um autor canônico na literatura brasileira e, por consequência, obrigatório nos catálogos das editoras, especialmente daquelas que trabalham a formação do leitor literário — explica Isabel Lopes Coelho, publisher de literatura da FTD, que lançará o infantil “A terra dos meninos pelados” e também terá sua própria edição de “Vidas secas”.

Morte no parto

Para chamar a atenção de leitores e se destacar em meio ao turbilhão de edições, editoras investem em volumes cheios de ilustrações e textos críticos. Este mês, a Todavia iniciou a publicação das obras completas com um surpreendente texto inédito. Trata-se de “Os filhos da coruja”, um poema assinado por J. Calisto (um dos muitos pseudônimos que Graciliano usou no início da carreira), escrito em 1920. O autor acabara de ficar viúvo da primeira mulher, morta no parto do quarto filho. E a fábula sobre um gavião, uma coruja e seus filhotes remetem tanto à perda quanto ao futuro de seus três filhos meninos, que cresceriam sem a mãe.

À frente da coleção, o pesquisador Thiago Mio Salla foi responsável por uma nova fixação das obras de Graciliano, buscando discrepâncias entre as diferentes edições de uma mesma obra. Os manuscritos dos primeiros livros do autor se perderam quando ele foi preso, em 1936. Na leva, estavam os originais do romance “Angústia”, também lançado este mês. A edição da Todavia teve como base um exemplar da quarta edição da José Olympio, com correções e anotações a caneta do próprio Graciliano feitas em 1949. Segundo Salla, nem todos esses ajustes foram implementados na quinta edição, publicada logo após a sua morte, em 1953. Com a mais nova versão do romance, o pesquisador espera ter se aproximado o máximo possível da última vontade do autor, conhecido por seu perfeccionismo.

— Próximo da morte, já doente, Graciliano continuava revisando seus livros anteriores para deixá-los mais concisos, pedindo até para o filho mapear e eliminar os excessos de “ques” no texto — conta Salla. — Através de mais de três mil notas de rodapé, apontamos os bastidores do processo de aperfeiçoamento de Graciliano, que fez ajustes sempre muito precisos.

Ilustração de Hal Widson para a edição de "Vidas secas" da FTD — Foto: Divulgação/ Hal Widson

Com previsão de lançamento para fevereiro, o “Angústia” da Companhia das Letras deverá se basear na quinta edição da José Olympio e terá posfácio da escritora Luciana Araújo Marques. No mesmo mês a editora lançará ainda “Vidas secas” e “S. Bernardo” (em outras versões, “São Bernardo”, como no filme de Leon Hirszman de 1972). A fixação ficou a cargo da pesquisadora Ieda Lebensztayn. As obras sairão em formato de bolso pelo selo Penguin Companhia, com preços mais acessíveis.

— Graciliano dizia que o principal na literatura é a simplicidade e a clareza obtidas com esforço — diz Lebensztayn. — Acredito que seja a mesma coisa com a fixação de um texto, ele precisa buscar essa clareza. Além disso, as novas edições renovam o olhar sobre o autor, com posfácios de uma geração nova de críticos, estudiosos da obra do escritor em diferentes universidades do país.

Outros frutos

Nem todas as editoras se limitam a relançar a obra. A Rocco não publicará livros do autor por enquanto, preferindo outro caminho. No segundo semestre sairá uma antologia de contos inspirados em “Vidas secas”, reunindo cinco autores de diferentes regiões do país: Ana Paula Lisboa (Rio), Jarid Arraes (Ceará), José Falero (Rio Grande do Sul), Tanto Tupiassu (Pará) e Fabiane Guimarães (Goiás).

— A corrida editorial é saudável, se pensarmos que a obra do autor será mais difundida, comentada, adotada e, por fim, lida — diz Ana Lima. — Achei que seria mais interessante uma abordagem diferente, visto que o Brasil segue tendo suas famílias de retirantes, paisagens áridas e vidas secas. A miséria que vem com a seca pode ser encontrada em outras regiões do país, nas comunidades, na periferia e no íntimo de tantos brasileiros. Chamar um escritor de cada região do Brasil para repensar como seriam essas vidas secas hoje foi uma forma de homenagear o autor e criar algo novo.

Editora de Graciliano desde 1975, com 25 títulos do escritor no catálogo (romances, antologias, uma HQ de “Vidas secas” etc.), a Record continuará publicando o autor. O diretor editorial Cassiano Elek Machado acredita que, não obstante o fim da exclusividade, a Record continuará conhecida como a “casa de Graciliano”.

Prefeito escritor

A editora está lançando um box com os três principais romances do escritor: “São Bernardo”, “Angústia” e “Vidas secas”, com prefácios dos críticos Silviano Santiago, Hermenegildo Bastos e Godofredo de Oliveira Neto e um ensaio inédito de Ivan Marques.

Em abril, sai “Prefeito escritor”, compilação de relatórios regidos pelo autor para prestar contas de sua administração em Palmeira dos Índios. O prefácio será de um “político de peso”, adianta Ricardo Ramos Filho, presidente da União Brasileira de Escritores e neto do autor de “Vidas secas”, mas ele não revela qual.

— Estamos tranquilos, porque as livrarias tendem a continuar trabalhando com as edições que já conhecem — diz Machado. — Quando Anne Frank caiu em domínio público (2016), foi a mesma coisa. As vendas caíram um pouco, mas ainda somos a editora de Anne Frank.

O contrato dos herdeiros com a editora assegura o pagamento de direitos autorais até 2029. Parte dos dividendos (a família pensa em 10%) será doada ao Innocence Projeto Brasil, que defende pessoas condenadas injustamente — como o próprio Graciliano, lembra Ramos Filho, que foi preso na ditadura Vargas por suas posições políticas. Segundo Machado, a decisão de firmar um contrato além do domínio público foi um gesto de “lealdade” à família.

Segundo a legislação brasileira, a obra de autor passa ao domínio público no ano seguinte ao 70º aniversário de sua morte. Ramos Filho disse ao GLOBO que a família não se opõe à disponibilização gratuita da obra de Graciliano no Portal Domínio Público (do Ministério da Educação), mas se incomoda que editoras lucrem publicando livros do autor sem pagar direitos autorais aos herdeiros. Os Ramos até tentaram mudar a lei.

— Entramos em contato com deputados progressistas que, com razão, falaram que mexer no domínio público não é uma pauta de esquerda. Como para a família não tem cabimento procurar a direita, deixamos por isso mesmo. Lei a gente não discute, a gente cumpre — conta Ramos Filho, cujo avô foi membro do Partido Comunista.

A cachorra Baleia

Os herdeiros, porém, não hesitarão em se “posicionar” (inclusive judicialmente) se forem editados textos que desfigurem a obra de Graciliano (alterando o enredo, por exemplo). A publicação de “Os filhos da coruja”, pela Todavia, incomodou.

— Graciliano instruiu meu pai a jamais publicar poemas dele. E a primeira coisa que publicam é um poema. Isso chateia a gente. Deviam respeitar a vontade do velho — reclama o neto.

Nas redes sociais, a entrada no domínio público gerou especulações sobre edições sem “gatilhos” para leitores sensíveis. Um post chegou a lançar uma provocação: qual seria a primeira edição de “Vidas secas” a excluir a morte da cachorra Baleia? Apesar das ameaças da família do autor, advogados especialistas em direito autoral garantem que não há empecilhos legais para alterar a obra de Graciliano.

— A regra do domínio é ampla e irrestrita, o que quer dizer usar o todo ou em parte ou só partes — diz Liana Machado, especialista em Direito Autoral e Propriedade Intelectual. — O único proibitivo seria alterar e creditar ao autor. Sob o domínio também vão ao chão os desejos do criador. Por exemplo, Graciliano deixou expresso que não permitia a publicação de poesia nem pós-morte. Essa vontade expressa teve de ser respeitada pelo espólio, mas entrando em domínio não vale mais nada. A dicotomia é: o desejo do autor versus o direito de o povo decidir.

Ieda Lebensztayn crê que Graciliano ficaria feliz com a ida de suas obras a domínio público, pois sempre lutou pela democratização do saber. Secretário de Educação de Alagoas, levou crianças negras para a escola. Na infância, frequentou uma biblioteca que definia como “provisão de sonhos”.

— Fazer jus à memória de Graciliano é garantir a sua provisão de sonhos no domínio público — compara Ieda.

Mais recente Próxima Festival de Parintins, em que BBB Isabelle desfila, tem disputa de bois e jurados ‘popstars’