No livro ‘Pixel’, a húngara Krisztina Tóth cria um labirinto de espelhos, questionando aparências

Ao seguir as pistas do paradeiro de cada personagem, o leitor se depara com um estado de espírito igualmente fragmentado, que aponta para o passado recente da Hungria

Por — Rio de Janeiro


A escritora húngara Krisztina Toth Divulgação

Um pixel é apenas uma parte de um todo em uma imagem. Uma célula de um corpo maior, uma cor chapada que, aglutinada em outros pixels, formata um traço que delineia um retrato, uma paisagem, uma abstração. Esta é uma definição um pouco mais romântica do que a que circula entre geeks e dicionários. “Pixel” também é o título do romance da escritora húngara Krisztina Tóth, autora publicada pela primeira vez no Brasil em tradução de Zsuzsanna Spiry.

Escritora aclamada em sua terra natal, Tóth é, sobretudo, uma poeta, pela capacidade de verter temas universais em narrativas (ou crônicas) breves. São cortes a seco de prosa, que trazem faces de humanos atormentados, combalidos e resignados. Por exemplo, em “A história do olho”, o capítulo três do romance, a autora traz a figura de uma deficiente visual em um vagão de trem. Ela é observada pelo narrador, que busca decifrar sua história. Dessa cena banal, surge uma expectativa, mais tarde incorporada em um drama familiar.

Adiante, no capítulo “A história da cabeça”, a mulher reaparece em uma loja de móveis, da rede Ikea, comprando varão de cortina para o apartamento da filha. Ali, no entanto, ela já não é protagonista. Os holofotes se voltam para a doença do marido da cega.

As palavras de Tóth são um arcabouço turvo, como uma radiografia tirada de um convalescente. É assim que vai se projetando a narrativa, a partir desse jogo do corpo. Ao longo de “Pixel”, as partes do corpo são desmembradas em um quebra-cabeças embaralhado, uma colcha de retalhos que traz personagens excêntricas, individualistas — essenciais para formar um espírito coletivo, em uma família ou mesmo em outros conjuntos afetivos.

No capítulo “A história do joelho”, Tóth apresenta um fotógrafo em apuros, que precisa lidar com seu processo criativo. “Aqui também poderia ter acontecido qualquer coisa. Será que foi por isso que surgiu a necessidade de registrar os detalhes individuais, em fotografias, por décadas? Para que pudesse recuperá-lo de sua cabeça, a qualquer momento, a reconstruir o Todo? Provavelmente não. Os detalhes foram necessários para a continuação, com o passar dos dias, cada detalhe concluído prenunciava a futura completude”, escreve a autora sobre a cena da bizarra instalação.

De joelhos, o homem paga uma espécie de penitência para tentar delinear a forma de um corpo. Visto de fora pelo narrador, esse voyeur privilegiado, o fotógrafo agrupa pequenos sachês secos de chá, almofadas velhas e balangandãs. Para tentar fechar sua obra, não importa se com ou sem coerência, o artista monta o set com esmero, contando os sachês, um a um, como se eles fossem os pixels da futura imagem. Uma projeção de algo que é real, mas não é. Apenas uma representação da forma humana, como se tem ao olhar o reflexo no espelho pela manhã.

Espírito fragmentado

Embora na ficha técnica o livro conste como “romance húngaro”, no Brasil, país da narrativa breve, a escrita de Tóth poderia mais se assemelhar a crônicas de melancolia ou pequenos contos existenciais.

A crítica especializada costuma traçar paralelos entre a história do Leste Europeu e a literatura de Tóth. Baseada em Budapeste, a autora publicou recentemente “Barcode” (“Código de barras”, em tradução livre), em que versa, entre dramas cotidianos, sobre as dificuldades de seu povo, fadado a regimes ditatoriais. Em “Pixel”, ao seguir as pistas do paradeiro de cada personagem, o leitor se depara com um estado de espírito igualmente fragmentado, que aponta para o passado recente da região, cheia de tortuosidades e contradições.

Capa da edição brasileira do livro "Pixel", da húngara Krisztina Toth — Foto: Reprodução

Ao eleger um personagem, com suas dúvidas e anseios, Krisztina Tóth constrói figuras ambíguas, que surpreendem o leitor ao serem vistas de outros ângulos — ou por outros personagem. Isto faz deste breve romance uma espécie de labirinto de espelhos, uma antologia de identidades.

Em “Pixel”, a autora prova que nunca somos aquilo que achamos, pelo menos no ponto de vista do outro. A realidade é relativa e, no labirinto da vida onde é difícil enxergar a verdade, quebramos a cara, estilhaçamos os espelhos. Deparamo-nos, constantemente, com a ilusão.

“Pixel”

Autora: Krisztina Toth. Tradução: Zsuzsanna Spiry. Editora: DBA. Páginas: 176. Preço: R$ 58,41.

Matheus Lopes Quirino é jornalista

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