Em novo disco, João Bosco revela o Aldir Blanc afetuoso, desprovido de acidez

Inconformado por não ter podido se despedir do parceiro, morto em 2020 de Covid, cantor e compositor homenageia o amigo em samba inédito e em parceria com o filho, Francisco

Por — Rio de Janeiro


O cantor e compositor João Bosco Guito Moreto

Quem chega à casa de João Bosco vê, estendidas logo na entrada, as bandeiras de Minas Gerais (onde ele nasceu, em 1946, na cidade de Ponte Nova), do Rio de Janeiro (estado cuja capital o acolheu como artista e morador) e do Flamengo. João é rubro-negro desde criança, quando ouvia os jogos pelo rádio. E se orgulha de ter conseguido transmitir a paixão ao filho em 1981.

Naquele ano, o Flamengo conquistou o Carioca, a Libertadores o Mundial e um torcedor, Francisco Bosco, então com 5 anos, hoje filósofo, apresentador do “Papo de segunda” (GNT) e parceiro do pai em boa parte das canções do novo álbum, “Boca cheia de frutas”.

Mas Aldir Blanc — o amigo e parceiro de uma vida, vitimado em 2020 pela Covid, mas presente em todo canto do disco — era vascaíno. E isso, João recorda com ternura.

— A gente ia juntos aos jogos dos dois times. Às vezes, a gente ia ao Maracanã quando não jogava nem Flamengo, nem Vasco. Da casa dele, era um pulo para o estádio — observa o cantor e compositor de 77 anos, recostado no sofá de casa, testemunha de muitas das conversas com Aldir que viraram sambas e outras canções. — Era diferente naquela época, não tinha essa disputa radical e agressiva. A gente ficava no último degrau da arquibancada porque ali dava para comprar chope no copo de papel.

Aldir não brigava com ele, João, mas amava arrumar confusão com outros. Por dentro, porém, conta o amigo, era uma pessoa doce, generosa. Esse lado afetuoso, desprovido da acidez que marcou muitos dos clássicos de Blanc-Bosco (como “De frente pro crime” e “Incompatibilidade de gênios), está em “E aí?”, parceria inédita da dupla que chegou ao disco por caminhos tortos.

João Bosco e Aldir Blanc, nos anos 1970 — Foto: Reprodução

Tudo começou em 2013, quando o jornalista Luiz Fernando Vianna lançou o livro “Aldir Blanc: resposta ao tempo”, no qual reunia as letras do artista até então. “E aí?” estava lá, como sendo uma parceria João & Aldir, mas o parceiro não se lembrava de tê-la visto antes. O mistério seguiu até a morte do compositor.

— A conclusão a que eu cheguei é a de que ele achava que tinha me mandado e não me mandou, ou ele me mandou e essa coisa se perdeu — conta João Bosco. — Quando comecei a gravar o disco, essa letra estava ali dentro desse São Jorge (pasta com uma imagem do santo na capa, onde ele reúne várias letras) e eu achei que aquela era a hora de musicá-la. E aí pensei naqueles momentos de um Aldir diferente, inteiramente afetuoso, desarmado, tranquilo e relaxado. Eram momentos em que ele sempre pedia para que eu tocasse “Tive sim”, do Cartola, que ele gostava de cantar. Por isso, pedi que o (pianista) Cristóvão Bastos citasse a canção na gravação do “E aí?”.

A perda, em 2020, do irmão, o cantor e compositor Tunai (em 19 de janeiro) e de Aldir (em 4 de maio), junto com problemas de saúde e o isolamento forçado por causa da pandemia de Covid, deixaram João Bosco arrasado. Ainda mais por não ter podido se despedir do parceiro.

— Meu filho falou que queria fazer no disco uma homenagem ao Aldir (aliás, padrinho de Francisco Bosco). E citou o “Nossas últimas viagens”, que ele tinha feito para o meu pai. Mas, não, tinha que ser uma coisa na medida dele, um samba mais animado — conta João, que compôs então com Francisco o “Gurufim”, o justo tributo ao parceiro.

Capa do álbum "Boca cheia de frutas", de João Bosco — Foto: Reprodução

Segundo João Bosco, esse seu novo trabalho é, além de uma intensa expressão da saudade de Aldir Blanc, um disco sobre os últimos quatro anos de Brasil. O disco “de maior fluidez” de toda sua obra, cheio de referências às heranças indígenas e africanas do país, que “começa com um certo ceticismo, uma certa distopia”, depois “ganha um fôlego com a delicadeza e a singeleza de ‘E aí?’”, e por fim parte para o sonho e a utopia, com “Cio da terra” (clássico de Chico Buarque e Milton Nascimento) e “Boca cheia de frutas” (a faixa-título, de João e Chico Bosco).

No meio do caminho de “Boca cheia de frutas”, João ainda passa pela entonação rascante de voz de Clementina de Jesus (“ela me mostrou quem eu era, de onde eu vinha”), por Tom Jobim (inspiração para a faixa instrumental “SobreTom”), e por João Gilberto (na intenção de quem ele fez “Samba sonhado”). No disco ainda figura Roque Ferreira, com quem fez “Dandara”.

João Bosco está montando um show para apresentar o repertório de “Boca cheia de frutas”, no qual vai contar com a sua banda e com uma seção de cordas. Mas, por enquanto o mundo o chama. No fim do mês, ele vai para os EUA, para shows em Miami, Washington e Nova York. No fim de junho, segue para Europa e depois volta para lá em outubro para shows em duo com o violoncelista Jaques Morelenbaum — com quem gravou no novo disco a faixa “O canto da terra por um fio”.

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