Chico Buarque chega aos 80 anos como um dos mais poéticos e contundentes cronistas do país
Músico e escritor é artista pleno que trilha caminho próprio e cria obras-primas que refletem tanto os sentimentos mais profundos de cada um quanto a compreensão de um Brasil inteiro
O ano era 1966 e, na contracapa de seu LP de estreia, “Chico Buarque de Hollanda ”, o cantor e compositor de 22 anos de idade admitia: “Pouco tenho a dizer além do que vai nesses sambas”. Ensanduichado entre a explosão da jovem guarda e a revolução tropicalista, Chico assinava seu compromisso com a música inaugurada no começo do século pelos negros Donga, Pixinguinha e João da Baiana.
No LP, que vinha com clássicos como “A banda” (vencedora de festival, na interpretação de Nara Leão), Chico era a encarnação do samba jovem, o garoto dos olhos magnéticos, de cor nunca identificada. Mais do que isso, o autor de versos como “se o samba quer que eu prossiga/ eu não contrario não” (de “Amanhã, ninguém sabe”), reiterados por ele em “Que tal um samba?” (2022), faixa mais recente desse artista que completa 80 anos na quarta-feira.
Entre um Chico e outro, está toda a História de um país, da qual é um dos mais poéticos e contundentes cronistas. Criado no seio da intelectualidade (seu pai era o historiador, sociólogo e escritor Sérgio Buarque de Hollanda, autor de “Raízes do Brasil”), o menino cresceu ligado em futebol, em clássicos da literatura e no melhor de uma época de ouro da música brasileira (Noel Rosa, Dorival Caymmi, Ary Barroso, entre outros). A audição do marco inicial da bossa nova, “Chega de saudade”, com João Gilberto, fez com que o violão virasse seu melhor amigo.
"Quis ser palhaço, bombeiro, intelectual, jogador de futebol, padre, deputado, ladrão de automóveis, galã e arquiteto. Nada deu certo, e acabei mesmo tocando violão", resumiu ele, em 1967, à “Fatos e Fotos”.
80 anos de Chico Buarque: veja fotos do cantor-compositor ao longo de sua carreira
1 de 24
Chico Buarque e o MPB4, em 1968, no Festival de Música Popular Brasileira — Foto: Arquivo 2 de 24
Chico Buarque em 1970, um dia depois de retornar do exílio na Itália — Foto: Arquivo/ Agência O GLOBO
24 fotos
3 de 24
No palco, Milton Nascimento e Chico Buarque, em show realizado em Três Pontas (MG) em 1977 — Foto: Paulo Moreira / Agência O Globo 4 de 24
Diretas Já: Chico Buarque e Fernando Henrique Cardoso durante comício em São Paulo — Foto: Antonio Carlos Piccino 5 de 24
Chico Buarque, Paulinho da Viola e Caetano Veloso — Foto: Athayde dos Santos / Agência O Globo 6 de 24
Bob Marley disputa partida de futebol com Chico Buarque no Rio — Foto: Reprodução/Instagram 7 de 24
Maria Bethânia e Chico Buarque no Canecão, em 1975 — Foto: Divulgação 8 de 24
Em 1968, atores encenaram "Roda Viva", no Rio. O elenco da peça, de Chico Buarque, foi espancado em São Paulo pelo Comando de Caça aos Comunistas — Foto: Reprodução 9 de 24
Imagem de 1968 que integra a fotobiografia de Chico Buarque, 'Revela-te, Chico', organizada por Augusto Lins Soares — Foto: Cynira Arruda 10 de 24
Chico Buarque em show no Canecão, em 1994. — Foto: Paula Johas / Agência O Globo 11 de 24
1998 - Chico Buarque - Estação Primeira de Mangueira, com o enredo "Chico Buarque da Mangueira" — Foto: Fernando Maia / Agência O Globo 12 de 24
Desfile da escola de samba Estação Primeira de Mangueira com o enredo "Chico Buarque da Mangueira" - — Foto: Hipólito Pereira / Agência O Globo 13 de 24
Show tributo a Tom Jobim no Rio de Janeiro, em 1995. Evento contou com Caetano Veloso, Gal Costa, Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil e Paulinho da Viola. — Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo 14 de 24
Chico Buarque num galpão em São Cristóvão, Rio de Janeiro, durante as filmagens do clipe da canção "Carioca", em 1998 — Foto: Ana Branco / Agência O Globo 15 de 24
Chico Buarque na turnê nacional de "Caravanas". Na foto, o compositor com o chapéu que pertenceu ao músico Wilson das Neves, em 2018 — Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo 16 de 24
Elza e Chico Buarque em bastidores de show em 2000 — Foto: Agência O Globo 17 de 24
Carlos Leonam foi o responsável pela foto de Chico Buarque em seu disco "Construção" — Foto: Reprodução 18 de 24
Em julho de 2018, ao lado de Gilberto Gil, Chico canta no festival "Lula Livre" — Foto: MAURO PIMENTEL / AFP 19 de 24
O cantor Chico Buarque com o grupo MPB4 — Foto: Leo Aversa 20 de 24
Chico Buarque em turnê "Que tal um samba?" — Foto: Leo Martins 21 de 24
Chico Buarque e Maria Bethânia dividiram o palco no Show de Verão da Mangueira, em 2020 — Foto: Divulgação 22 de 24
Os cantores Chico Buarque e Mônica Salmaso, no show "Que tal um samba?" — Foto: Divulgação/Leo Aversa 23 de 24
Show "Ô Sorte - Wilson das Neves 80 anos". Na foto, Ney Matogrosso e Chico Buarque — Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo 24 de 24
Chico Buarque no primeiro episódio de 'Na trilha do som', de Marcelo Janot para o Canal Curta — Foto: Divulgação
Nada à toa na vida
Num tempo em que tudo parecia ser possível, um talentoso contingente jovem batalhava para reorientar a canção brasileira. Enquanto os tropicalistas trilhavam o caminho do pop e da eletricidade, ele seguiu seus próprios desígnios, traçados pelo samba — certa vez, Caetano Veloso chegou a dizer que Chico “anda para a frente arrastando a tradição”.
ra um caminho que ele percorreria com grandes parceiros musicais, como Edu Lobo, Francis Hime, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e, nos últimos anos, o neto Chico Brown. Entre canções de qualidade cinematográfica e pérolas românticas (com um olhar feminino que o transformou no compositor mais desejado pelas grandes cantoras, de Maria Bethânia a Elza Soares), Chico conquistou popularidade e fez a trilha sonora do Brasil.
Um Brasil que mergulhava nos anos de chumbo da ditadura, a qual ele reagiu com um autoexílio em Roma mas também com sambas como “Apesar de você”, “Construção”, “Acorda amor” (assinado com pseudônimo para escapar à censura) e, à beira da redemocratização, com “Vai passar”, hino do movimento Diretas Já.
Chico Buarque, amigos e parceiros musicais; Veja fotos
1 de 19
Chico Buarque, Paulinho da Viola e Caetano Veloso — Foto: Athayde dos Santos / Agência O Globo 2 de 19
Chico Buarque e Gal Costa: amizade e parceria profissional — Foto: Divulgação / Adriana Pittigliani
19 fotos
3 de 19
Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, no Rio de Janeiro, 1979. — Foto: Evandro Teixeira/ Acervo Instituto Moreira Salles 4 de 19
Maria Bethânia e Chico Buarque no Canecão, em 1975 — Foto: Divulgação 5 de 19
No palco, Milton Nascimento e Chico Buarque, em show realizado em Três Pontas (MG) em 1977 — Foto: Paulo Moreira / Agência O Globo 6 de 19
Chico Buarque e o MPB4, em 1968, defendendo 'Benvinda' no no Festival de Música Popular Brasileira — Foto: Arquivo 7 de 19
Djavan, João do Vale e Chico Buarque em 1982 — Foto: O Globo 8 de 19
Futebol na casa de Chico Buarque contou com as presenças de Paulo Cesar Caju, Bob Marley e Toquinho, dentre outros — Foto: Luiz Pinto / Agência O Globo 9 de 19
Bob Marley disputa partida de futebol com Chico Buarque no Rio — Foto: Reprodução/Instagram 10 de 19
Chico Buarque de Holanda (cantor e compositor) - Na foto, Chico Buarque, Nara Leão e Cacá Diegues — Foto: Jorge Ventura / Editora Globo / Agência Globo 11 de 19
Show tributo a Tom Jobim no Rio de Janeiro, em 1995. Evento contou com Caetano Veloso, Gal Costa, Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil e Paulinho da Viola. — Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo 12 de 19
hico Buarque de Holanda (cantor e compositor), com o amigo Nilton Delfino Marçal, mais conhecido como Mestre Marçal (instrumentista e ritmista) — Foto: Eurico Dantas / Agência O Globo 13 de 19
Chico Buarque e Tom Jobim — Foto: Monique Cabral / Agência O Globo 14 de 19
O cantor Chico Buarque e o baterista Wilson das Neves — Foto: Divulgação 15 de 19
Maria Bethânia ganha reverência de Chico Buarque em show em homenagem à Mangueira — Foto: Divulgação 16 de 19
Em julho de 2018, ao lado de Gilberto Gil, Chico canta no festival "Lula Livre" — Foto: MAURO PIMENTEL / AFP 17 de 19
Chico Buarque e Maria Bethânia dividiram o palco no Show de Verão da Mangueira, em 2020 — Foto: Divulgação 18 de 19
Show "Ô Sorte - Wilson das Neves 80 anos". Na foto, Ney Matogrosso e Chico Buarque — Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo 19 de 19
Chico Buarque e Monica Salmaso sobem ao palco do Vivo Rio na estreia da turnê 'Que tal um samba?' no Rio de Janeiro — Foto: Leo Martins
Compositor que transitou por vários estilos, sempre ao seu jeito, Chico fez música infantil (“Saltimbancos”) e até rock (“Jorge Maravilha”). Enveredou pelas trilhas de cinema, pelo teatro, pelos musicais e, a partir de “Estorvo” (1991), conquistou o reconhecimento como romancista. Se, depois de certo ponto, silenciou no plano das entrevistas, as obras começaram a falar por ele — como ele desejava desde aquela estreia em 1966.
Não se afobe, não
Num novo milênio em que a violência social se explicitou no limite do insuportável, Chico Buarque seguiu sendo a chave para a compreensão do Brasil. Seja na releitura da sua “Cálice” pela ótica das quebradas do rapper Criolo, ou na incisiva revisão do histórico de escravidão da canção “Sinhá”, lançada em 2011.
Quando necessário, Chico bateu de frente, como quando se manifestou contra o racismo dos que falavam sobre seu neto, Chico Brown, filho de sua filha Helena com Carlinhos Brown. “As pessoas pensam que são brancas, pensam que eu sou branco. Só no Brasil é que eu sou branco ou que minha filha é branca”, disse ele ao diretor Roberto Oliveira em um documentário. No sábado (15) mesmo, em Paris, onde está com a família para comemorar seu aniversário, participou de manifestação contra o avanço da extrema direita na França.
Mas sua arma mais letal e sorrateira continuava mesmo sendo o samba, como reafirmaria em “Que tal um samba”, com o qual exorcizou uma das páginas infelizes de nossa História com um convite à dança e à celebração: “Depois de tanta demência/ e uma dor filha da puta, que tal?/ puxar um samba/ que tal um samba?”