Maior exposição já dedicada a Luiz Zerbini, em cartaz até setembro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio, “Paisagens ruminadas” tem seu título inspirado por uma frase do próprio pintor: “Viver é ruminar paisagens”. O sentido figurado dado à forma de alimentação dos ruminantes, que retornam o alimento do estômago à boca para mastigá-lo novamente, é utilizado pelo paulistano radicado no Rio desde os anos 1980 para refletir sobre seu processo de criação, no qual referências artísticas e a própria produção são retomadas e recriadas constantemente, em quase cinco décadas de carreira.
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Com curadoria de Clarissa Diniz, a panorâmica perpassa trabalhos de Zerbini desde o final dos anos 1970, incluindo por pinturas icônicas dos anos 1980 e 1990, até monotipias mais recentes. Com cerca de 140 obras, a mostra traz ainda trabalhos em outros suportes, como esculturas, criações assinados pelo Chelpa Ferro (coletivo criado com o escultor Barrão e o editor de cinema Sergio Mekler, em 1995) e “Pedrona” (2024), instalação inédita criada com materiais como isopor, poliuretano, e resina.
A exposição traz ainda obras pouco vistas, como o tríptico “Botafogo” (1988), pertencente a uma coleção particular e que aborda a violência urbana do Rio. Citada por Caetano Veloso na faixa-título do álbum “O estrangeiro”, lançado no ano seguinte (na mostra, a obra é mostrada junto a um monitor que exibe o clipe da música).
— A curadoria te faz ver a sua obra pelos olhos de outra pessoa, é bom ver tudo com os olhos da Clarissa. Tem coisas que eu nem lembrava direito. “Botafogo” não via há muito tempo, nem sei se ela chegou a ser exposta no Rio — comenta Zerbini. — Organizado assim, parece mais fácil entender meu processo de criação, as ligações e as passagens ficam mais claras. Mas para mim é tudo mais caótico, fico realmente ruminando entre memórias e ideias, tudo se mistura. Fico surpreso de ter feito algumas coisas, não sei de onde vem aquilo direito. Mas não é um pensamento nostálgico, tem uma relação cotidiana do trabalho no ateliê que te ancora no presente.
A curadoria ocupa todo o primeiro andar do CCBB, divide as obras em cinco núcleos: “Viver é ruminar paisagens”, “O lugar de existência de cada coisa”, “Da natureza alegórica da paisagem”, “Eu paisagem” e “Não é só sobre o que se vê”.
— O Luiz sempre se coloca como um paisagista, e a mostra não aborda a paisagem apenas como uma forma de produzir uma imagem, só por seu significado histórico, e sim como uma categoria política — observa Clarissa Diniz. — Suas paisagens são uma forma de organizar o mundo, sujeitos, tempos, vidas. A imagem não fica reduzida ao cartão-postal, um lugar recortado num retângulo, que é uma armadilha fácil para a pintura. As suas obras maneiras de articular o pensamento extremamente política, cada paisagem é um reflexo da sua postura como cidadão.
Veja obras da retrospectiva 'paisagens ruminadas'
Os elementos sociais e políticos que atravessam as paisagem ficam mais evidentes em obras como “Primeira missa” (2014) — do acervo do Masp, que promoveu em 2022 a individual “Luiz Zerbini: a mesma história nunca é a mesma”, com 50 obras e curadoria de Adriano Pedrosa e Guilherme Giufrida — “Eu paisagem” (1998) e a própria “Botafogo”. Para o pintor, os temas surgem nas obras de forma natural, e não discurso.
— Outro dia me perguntaram sobre as questões ecológicas do meu trabalho, como se existisse uma função por trás ou fosse construído a partir disso. Mas o que vem antes é o indivíduo, o meu trabalho é uma consequência da minha vida, da forma como olho o mundo. Ele não está à frente disso — ressalta o pintor. — A forma como cada obra é construída traz questões políticas por refletirem o meu interesse pelo mundo. De querer saber que lugar é aquele, de onde vêm essas pessoas.
A mostra (que, encerrada a temporada carioca, seguirá para o CCBB de Brasília) reúne também alguns dos autorretratos pintados por Zerbini ao logo dos anos. Além dos telas representando o próprio rosto (ou, no caso da irreverente “Abajur”, de 1997, com a cabeça coberta por um balde), o artista também pode ser visto encontrado em inserções dentro de outras obras. Aos 65 anos, completados em abril, o pintor diz que a visão dos retratos reunidos evoca, de certa maneira, os momentos em que foram produzidos.
— Tirando as monotipias mais recentes, nem fiz tanto autorretratos assim. Quase que um a cada dez anos, acho que quase todos estão na exposição. Em determinado momento você se questiona, olho a tela e penso: “Quem é esse cara?” — diz o pintor. — De alguns me lembro melhor o que pensava na época. No “Abajur”, estava sentindo uma vergonha de tudo, aí pensei numa avestruz e acabei fazendo o balde na cabeça. Em “Gavião” (1976) era jovem e fiz o corpo sobre a cidade, a representação de uma ideia suicida. Já pintei autorretrato depois de visitar meu pai pela última vez no hospital. O engraçado é que, quem compra, não vai ter a menor ideia do que sentia naquele momento, cada obra ganha um significado próprio.