O que os clientes da Amazon não veem: o trabalho na gigante do e-commerce é um ambiente selvagem

Reportagem do New York Times revela como um sistema de gestão de pessoas hostil e automatizado colapsou na pandemia de Covid. Doentes foram demitidos ou tiveram benefíciios cortados

Por Do New York Times


O gigantesco armazém de Staten Island da Amazon, que atende Nova York: desempenho dos funcionários é monitorado em tempo real, com metas de ritmo de empacotamento por minutos NYT — Foto:

NOVA YORK - Em setembro passado, a fisioterapeuta Ann Castillo viu um e-mail da Amazon que não fazia sentido. Seu marido havia trabalhado para a empresa por cinco anos. A empresa agora queria que ele voltasse ao turno da noite.

“Notificamos seu gerente e o RH sobre seu retorno ao trabalho em 1º de outubro de 2020”, dizia a mensagem.

Ann não acreditou no que estava lendo. Seu marido de 42 anos, Alberto, estava entre a primeira leva de funcionários do local a testar positivo para o coronavírus. Afetado por febres e infecções, ele sofreu extensos danos cerebrais.

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Durante meses, ela alertara a empresa que seu marido, que sempre teve orgulho de trabalhar para o gigante do varejo, estava gravemente doente.

As respostas foram desconexas e confusas. E-mails e ligações para os sistemas automatizados da Amazon geralmente acabavam num beco sem saída.

'Eles não sabem o que há com ele?'

Os benefícios da empresa eram generosos, mas Ann entrou em pânico quando os pagamentos por invalidez foram misteriosamente interrompidos. Ela conseguiu falar com vários funcionários de recursos humanos, um dos quais restabeleceu os pagamentos. Mas, depois disso, o diálogo passou a ser feito apenas por respostas automáticas e mensagens de correio de voz no telefone de seu marido perguntando se ele voltaria.

— Eles não acompanharam o que aconteceu com ele? — ela se perguntou. — Seus funcionários são descartáveis? Vocês podem simplesmente substituí-los? — queria questionar a empresa.

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O local de trabalho de Alberto Castillo, o armazém gigante em Staten Island que é o único centro de fornecimento da Amazon para Nova York, vinha fazendo o impossível durante a pandemia.

Ann Castillo cuida do marido, Alberto, gravemente doente com Covid: empresa quis que ele voltasse ao trabalho mesmo após inúmeras tentativas de avisar sobre problema NYT — Foto:

Com as empresas de Nova York sofrendo um colapso em massa, o armazém, chamado JFK8, absorveu funcionários de hotéis, atores, bartenders e dançarinos, pagando quase US$ 18 por hora.

Impulsionado por um novo senso de missão para atender clientes com medo de comprar pessoalmente, o JFK8 ajudou a Amazon a quebrar recordes de remessas, atingir vendas estratosféricas e obter o equivalente aos lucros dos três anos anteriores reunidos em um só.

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Esse sucesso, velocidade e agilidade foram possíveis porque a Amazon e seu fundador, Jeff Bezos, foram os pioneiros em novas formas de gerenciamento em massa de pessoas por meio da tecnologia, contando com um labirinto de sistemas que minimiza o contato humano para crescer sem restrições.

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Mas a empresa estava vacilando de maneiras que as pessoas de fora não podiam ver, de acordo com uma investigação do New York Times do armazém JFK8 no ano passado.

Gerenciamento de pessoas falho

Em contraste com seu processamento preciso e sofisticado de pacotes e produtos, o modelo da Amazon para gerenciar pessoas - altamente dependente de métricas, aplicativos e chatbots - era desigual e tenso mesmo antes da chegada do coronavírus. Muitas vezes, os trabalhadores tinham que se virar sozinhos para explicar seus problemas.

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Em meio à pandemia, o sistema da Amazon resultou em demissões inadvertidas e benefícios paralisados e impedia a comunicação.

Trabalhadores como Alberto Castillo, do JFK8, eram instruídos a tirar tantas folgas não remuneradas quanto precisassem e, em seguida, fazer horas extras obrigatórias.

Quando a Amazon ofereceu aos funcionários licenças pessoais flexíveis, o sistema que cuidava delas travou, emitindo uma enxurrada de avisos de abandono de emprego aos funcionários. A equipe responsável teve que correr para preservar as pessoas, de acordo com empregados do RH e do armazém.

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Número de vítimas ocultado

Depois que as ausências inicialmente dispararam e interromperam as entregas, a Amazon deixou os funcionários praticamente no escuro sobre o real número de vítimas do vírus.

A empresa não informou aos trabalhadores do JFK8 ou de outros depósitos o número de casos de Covid na empresa. Enquanto a Amazon disse publicamente que estava divulgando os números confirmados às autoridades de saúde, em Nova York os registros não mostram nenhum caso relatado até novembro. A empresa e autoridades municipais contestam o ocorrido.

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A Amazon continuou a monitorar cada minuto dos turnos da maioria dos trabalhadores do armazém, desde a rapidez com que embalavam a mercadoria até o tempo que durava uma pausa. Esse é o tipo de monitoramento que estimulou uma tentativa frustrada de sindicalização liderada por um grupo de funcionários negros em um depósito do Alabama.

'Não somos números, somos humanos'

Se a produtividade caía, os computadores da Amazon presumiam que a culpa era do trabalhador.

No início da pandemia, a varejista on-line interrompeu a demissão de funcionários por baixa produção, mas essa mudança não foi anunciada claramente no JFK8, então alguns trabalhadores ainda temiam que trabalhar devagar custaria seus empregos.

Funcionária empacota ecomenda no armazém de Staten Island: "não somos números, somos seres humanos" NYT — Foto:

“É muito importante que os gerentes de área entendam que os trabalhadores são mais do que apenas números”, escreveu um funcionário no quadro de feedback interno do JFK8 no fim do ano passado.

“Somos seres humanos. Não somos ferramentas usadas para fazer suas metas diárias/semanais”, acrescentou.

A empresa divulgou números impressionantes de criação de empregos: somente de julho a outubro de 2020, ela conseguiu 350 mil novos trabalhadores, mais do que a população da cidade americana de Saint Louis.

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Muitos dos novos recrutados — contratados por meio de triagem de computador, com pouca conversa ou verificação — duraram apenas dias ou semanas.

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Alta rotatividade

Mesmo antes da pandemia, mostram dados, a Amazon perdia cerca de 3% de seus funcionários horistas a cada semana, o que significa que a rotatividade entre sua força de trabalho era de cerca de 150% ao ano. Essa taxa, quase o dobro das indústrias de varejo e logística, fez com que alguns executivos se preocupassem com a possibilidade de ficar sem trabalhadores nos EUA.

Em abril último, Bezos disse que estava orgulhoso da cultura de trabalho da empresa, das metas de produtividade "alcançáveis", do pagamento e dos benefícios.

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A Amazon reconheceu alguns problemas com demissões inadvertidas, perda de benefícios, avisos de abandono de emprego e licenças, mas se recusou a revelar quantas pessoas foram afetadas.

Mas vários ex-executivos que ajudaram a projetar os sistemas da Amazon disseram que a alta rotatividade, a pressão sobre a produtividade e as consequências da ampliação acelerada do número de funcionários se tornaram graves demais para serem ignoradas.

A empresa não abordou essas questões com a importância que o tema merece, disse Paul Stroup, que até recentemente liderava equipes corporativas dedicadas a atender os trabalhadores de armazéns.

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— A Amazon pode resolver praticamente qualquer problema que quiser — disse ele em uma entrevista.

A divisão de recursos humanos, porém, afirmou o ex-funcionário, estava longe do foco, rigor e investimento vistos nas operações logísticas da Amazon, onde ele havia trabalhado anteriormente.

— [No RH], parecia que eu estava em uma empresa diferente.

Maior empregador dos EUA

Até mesmo Bezos, em seu último período como CEO da empresa que criou, agora está, surpreendentes, admitindo algumas falhas. Em uma carta recente aos acionistas, ele disse que o esforço sindical mostrou que “precisamos de uma visão melhor de como criamos valor para os funcionários”.

A Amazon também está a caminho de se tornar o maior empregador privado do país dentro de um ou dois anos, à medida que continua se expandindo. Cerca de 1 milhão de pessoas nos Estados Unidos, a maioria deles trabalhadores por hora, agora dependem dos salários e benefícios da empresa.

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