Vale-refeição e alimentação: medida provisória reabre disputa de um mercado de R$ 150 bi

Portabilidade de benefícios coloca em lados opostos empresas do setor e as que querem entrar com força no segmento

Por Manoel Ventura e Glauce Cavalcanti — Brasília e Rio


Setor de cartões de alimentação e refeição atrai a atenção de empresas como Nubank, Mercado Pago e PicPay: com a portabilidade, trabalhador pode escolher qual bandeira prefere usar. Restaurantes são contra a mudança Thiago Freitas/Agência O Globo

A edição pelo governo de uma medida provisória (MP) sobre vale-refeição reabriu uma disputa em torno da regra que permite a portabilidade do benefício, um mercado que movimenta cerca de R$ 150 bilhões por ano. A situação coloca em lados opostos empresas tradicionais do setor de benefícios e companhias que desejam entrar com força no segmento.

No ano passado, o Congresso aprovou ampla alteração nas regras do vale-alimentação. Entre as mudanças, foi aprovada a portabilidade gratuita de cartões a partir de maio de 2023. Ou seja, o trabalhador poderia escolher com qual cartão de benefício deseja operar. A legislação determinou a interoperabilidade das redes credenciadas — um restaurante que aceita uma bandeira terá de aceitar todas.

O governo Lula, porém, não regulamentou esses mecanismos a tempo e editou uma MP para prorrogar por um ano o prazo de início da portabilidade e da interoperabilidade. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego argumentou à época, não houve tempo hábil para isso, em razão da complexidade do tema.

MP no Congresso

Ao levar o assunto ao Congresso mais uma vez, abriu-se uma nova disputa nos bastidores sobre a portabilidade em si. A associação de bares e restaurantes (Abrasel) e as gigantes do setor (como Sodexo, Alelo e Ticket) são contra essa possibilidade e querem aproveitar a MP para proibir o benefício. Do outro lado, iFood e outras empresas como Nubank, Mercado Pago e PicPay têm interesse no mercado e defendem a portabilidade.

Portabilidade de benefícios coloca em lados opostos empresas do setor e as que querem entrar no segmento — Foto: Ana Branco

Essas mesmas empresas já haviam divergido no ano passado em torno do tema e voltaram a pressionar o Congresso e o governo sobre o assunto. A MP, que perde a validade no próximo dia 28, pode ser votada na semana que vem na comissão especial que a analisa. Em seguida, vai para os plenários da Câmara e do Senado.

A portabilidade dará a opção para o trabalhador escolher com qual cartão pretende receber seu vale-alimentação. Os benefícios são pagos dentro do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), que dá às empresas incentivos fiscais com base nos valores distribuídos aos empregados.

Nos últimos dias, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, passou a se manifestar nos bastidores a favor de restrições na portabilidade, mas essa não está sendo tratada como posição do governo. Em nota, a pasta afirmou que o assunto ainda está em discussão interna e não há posicionamento.

O Palácio do Planalto estuda deixar a MP perder validade e regulamentar a portabilidade logo em seguida. Além disso, o governo é contra alterar a regra da interoperabilidade.

Cashback para funcionário

Um dos principais argumentos de quem é contra a portabilidade é a possibilidade de empresas oferecerem cashback (devolução de dinheiro) para o trabalhador. O argumento é que isso aumenta custos para estabelecimentos e gera distorções no programa de alimentação.

Para evitar isso, uma opção estudada no governo é estabelecer que o cashback só pode ser feito na conta de alimentação do trabalhador.

A Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT), que representa a maior parte das companhias do setor, é contrária à portabilidade.

— A gente entende que, quando se faz isso, alguém vai pagar a conta. Pelo que tudo indica, isso vai aumentar o custo do estabelecimento credenciado, que deve repassar isso para o trabalhador — disse Alaor Aguirre, presidente do Conselho da ABBT.

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Procuradas, Sodexo, Ticket e Alelo informaram que sua manifestação se dá pela ABBT. Para a Abrasel, a portabilidade seria uma espécie de novo “rebate”. A prática consistia num desconto dado principalmente pelas grandes operadoras de benefícios sobre a recarga total dos cartões feita pela empresa contratante. E foi proibida em novembro.

A portabilidade, diz o presidente da Abrasel, Paulo Solmucci, traria o problema de volta, por ter “dificuldades operacionais enormes”:

— Com a portabilidade, a grande operadora, ao invés de atrair o RH da empresa contratante, vai atrair o trabalhador com descontos e cashbacks. Essa conta vai bater nos estabelecimentos que vão subir preços. O trabalhador vai gastar mais.

A favor da portabilidade, o iFood diz que isso vai beneficiar o setor e os consumidores.

— O consumidor vai poder escolher de qual empresa ele receberá os valores. Sobre a questão do cashback, é possível discutir detalhes na regulamentação, inclusive um teto — disse João Sabino, diretor de Políticas Públicas da empresa.

Fintechs de olho

A Zetta, que representa as entrantes ou com intenção de entrar no mercado de benefício, reunindo 30 fintechs (como Nubank, iFood, Mercado Pago, PicPay e Caju), entende que a nova regulação será uma virada de chave para o setor.

— É um mercado de grande potencial. E ainda concentrado na mão de poucas empresas dominantes, refletindo uma deficiência do modelo atual — afirma Eduardo Lopes, presidente da Zetta e diretor de Políticas Públicas do Nubank.

O interesse é crescente. Fintechs como Mercado Pago e PicPay, por exemplo, já ingressaram nesse segmento. O duelo com as gigantes desse mercado é central no debate. Para a mudança em pauta ser positiva para o trabalhador e o mercado, conta um executivo de uma grande fintech, o Ministério do Trabalho terá de ser muito eficiente na regulação.

A discussão bate na escolha do trabalhador, mas o serviço é contratado pelo setor de recursos humanos das empresas.

— As operadoras não podem mais conceder descontos financeiros às empresas, mas podem conceder benefícios diretos ou indiretos ao trabalhador com foco em promoção de saúde e segurança alimentar. São R$ 2,5 bilhões em descontos que podem ser convertidos nessas duas frentes — destaca Ítalo Martins, da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH Brasil).

Jean Paul Rebetez, à frente da área de Estratégia e Gestão e sócio-fundador da Gouvêa Consulting, sublinha a importância de olhar para a saúde do trabalhador:

— A portabilidade pode implicar em desvio de finalidade (se o cartão for usado para outros fins). Permite a grandes plataformas desviar o padrão mínimo de alimentação. Pode vir uma guerra de cashbacks e judicialização.

As grandes operadoras, continua Rebetez, fizeram muito pouco pela saúde do trabalhador, negligenciando há anos demandas em saúde física e mental. São pontos que poderiam, diz o especialista, ser usados como benefícios para atrair o trabalhador, no lugar de descontos e cashback.

O que mudaria no dia a dia?

O trabalhador vai poder escolher qual bandeira quer usar?

Se a legislação não mudar, o funcionário poderá solicitar à atual operadora a portabilidade gratuita do cartão de benefício.

A empresa empregadora passa a ser obrigada a oferecer todas as bandeiras?

Não. A empregadora manterá o contrato com uma única emissora do cartão, que terá que permitir a portabilidade.

Como isso vai funcionar na prática?

A ideia é que exista uma câmara de compensação, um sistema já utilizado entre instituições financeiras. Assim, as empresas conseguem trocar informações sobre ordens de pagamento.

Qual é o argumento das empresas que apoiam a mudança?

As defensoras da portabilidade argumentam que ela dará mais liberdade e poder de escolha para o consumidor, que poderá selecionar qual bandeira pretende usar.

Por que os restaurantes se manifestaram contra a portabilidade?

Eles afirmam que gigantes do segmento financeiro e de entregas podem oferecer cashback para os clientes. A avaliação é que, para bancar o benefício ao trabalhador, as empresas que emitem os cartões repassariam os custos aos estabelecimentos.

Os estabelecimentos comerciais serão obrigados a aceitar todas as bandeiras?

Na prática, sim, seguindo o princípio da interoperabilidade. Mas isso será feito com mudanças realizadas pelas próprias operadoras de cartão, não pelas empresas do setor de restaurantes.

Em quanto tempo a mudança pode ser implementada?

Se a lei não mudar, a partir de 1º de maio de 2024.

A portabilidade muda as regras entre cartão refeição e alimentação? Será possível usar o mesmo cartão para supermercados e restaurantes?

Não há mudanças sobre isso.

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