Mercado de trabalho aquecido com inflação comportada: entenda o paradoxo da economia brasileira

Preços de serviços no país ainda estão abaixo do registrado no período pré-pandemia

Por — Rio


Inflação está comportada, caindo em relação ao ano passado Brenno Carvalho / Agência OGLOBO

A taxa de desemprego está nas mínimas históricas, o salário vem subindo, as previsões para o crescimento da economia este ano são revisadas para cima semanalmente, mas, ao contrário do que as máximas econômicas ditam, a inflação está comportada, caindo em relação ao ano passado.

O que explica esse fenômeno, já que o efeito dos salários na inflação é conhecido? Especialistas citam desinflação global e até mudanças estruturais na economia, que tornam o salário um componente que deixou de ser um preditor de inflação de curto prazo.

No Brasil, há uma explicação adicional: o nível de preços dos serviços ainda está abaixo do período anterior ao da pandemia, principalmente aqueles intensivos em trabalho, mesmo com a subida recente. São serviços como costureira, cabeleireira, manicure, empregada doméstica, mão de obra em geral, médico, dentista.

— Se o Banco Central estivesse operando por aparelhos (ou seja , seguindo automaticamente as regras dos manuais de economia), os juros já estariam na Lua — afirma o economista-chefe da corretora Tullett Prebon Brasil, Fernando Montero.

Serviços subindo mais que alimentos

Ele calcula o avanço da inflação por grupos de preços e viu que, enquanto a alimentação no domicílio aumentou 47,15% desde fevereiro de 2020, o reajuste dos serviços intensivos em trabalho se limitou a 17%.

Já nos últimos 12 meses, esse movimento foi inverso. Os alimentos subiram 0,58%, contra 5,37% dos serviços intensivos em trabalho. Portanto, há margem para uma alta desse segmento daqui para frente, desde que outros preços da economia caiam ou subam menos. Em outras palavras, há espaço para ganhos salariais sem pressionar a inflação.

— Foto: Editoria de Arte

Aqui como nos EUA

Esse aparente paradoxo da economia não acontece só no Brasil. Nos Estados Unidos, a subida dos salários não afetou a inflação como se esperava. E os economistas estão esperando que o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) comece a cortar os juros, que estão em níveis historicamente altos, ainda neste semestre.

— A inflação subiu muito rapidamente nos Estados Unidos, como se sabe hoje, pelos problemas nas cadeias de produção que foram impactadas pela pandemia, muito mais do que por problemas de demanda. Os salários nominais (ou seja, sem descontar a inflação) subiram tanto que todo mundo esperava um efeito intensificador da inflação — afirma a economista Monica de Bolle, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics.

Ela explica que os salários subiram nos EUA, mas a inflação também. Quando se desconta a alta de preços, os salários reais subiram pouco e estagnaram:

— O salário real subiu e parou, não está mais subindo, está no patamar exato da pré-pandemia. Isso explica essa má vontade em relação ao Biden (Joe Biden, presidente dos EUA que busca a reeleição este ano). A economia voltou para onde estava antes da pandemia. O que fica para a população é essa sensação de que as coisas pioraram.

Aquecimento do mercado de trabalho

O professor da PUC Luiz Roberto Cunha, especialista em inflação, diz que o aquecimento do mercado de trabalho é uma preocupação do Banco Central brasileiro, que vem chamando a atenção para esse ponto em atas e relatórios nas últimas semanas. Cunha afirma que o aquecimento do consumo, que fez o PIB crescer 3% dois anos seguidos, está sendo sustentado mais pelas transferências governamentais, como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e aposentadorias e pensões.

— Isso pressiona o fiscal, as contas públicas, mas não o custo das empresas — diz.

Segundo cálculos de Montero, da Tullet Prebon, entraram 16 milhões de novas fontes de renda na economia brasileira entre 2019 e 2023, entre concessões de aposentadorias, pensões, benefícios sociais e salários. Mas somente cerca de cinco milhões vêm de novas vagas no mercado de trabalho.

O economista lembra que era quase um mantra: quando o salário sobe além da taxa natural de desemprego, vira inflação. Como isso não está acontecendo, procuram-se as razões. Será que a economia brasileira agora está mais produtiva, ou seja, pode crescer mais sem gerar inflação? Montero acha que não. O investimento vem caindo, e isso abate a capacidade de expansão do país.

Ele diz que há uma dificuldade de antever como vão se comportar esses preços, após o choque da pandemia:

— Não sabemos qual o salário real de equilíbrio da economia no pós-pandemia. É o mesmo do anterior? É maior? É menor? Ninguém sabe.

Desinflação

Fábio Romão, economista sênior da LCA Consultores, diz que, mesmo com os serviços subindo, ainda que lentamente, outros preços estão caindo:

— A gasolina subiu 12,1% no ano passado com a recomposição parcial dos impostos. Este ano, prevemos alta de 4%. Ônibus urbano também. Em ano eleitoral, diminuem os reajustes. A conta de luz deve fechar outro ano em bandeira verde.

Segundo ele, a desinflação só não é mais intensa por causa do mercado de trabalho aquecido:

— Não é que os salários não possam ter ganho real. Houve um choque de oferta que está sendo dissipado, e a recomposição está bem lenta.

Mais recente Próxima No pós-pandemia, ‘ninguém mais faz escova no cabelo’, diz dona de salão