Elon Musk e outros investidores bajulam Milei enquanto argentinos se queixam de cortes nos gastos públicos

Arrocho nas contas públicas paralisa obras quase prontas e afeta a vida de milhares de argentinos; 40% da população do país está abaixo da linha da pobreza

Por Bloomberg — Buenos Aires


Musk e Milei se reuniram em abril Gabinete da presidência da Argentina via X

Do Milken Institute em Beverly Hills este mês, um Elon Musk sorridente mostrou dois polegares para cima ao lado do presidente da Argentina, Javier Milei, e recomendou investir no país sul-americano. Isso aconteceu um dia antes de o bilionário Stanley Druckenmiller elogiar Milei em uma entrevista ao canal de TV americano CNBC.

O investidor do Vale do Silício, Peter Thiel, visitou o presidente argentino no palácio presidencial em fevereiro e repetiu o ato há algumas semanas. Neste mês, o guru de risco político Ian Bremmer elogiou as políticas de Milei em um vídeo de oito minutos, dizendo que seus cortes nos gastos do governo eram exatamente o que o país precisava após anos de inflação alta e crescimento lento.

Mas essa mesma pressão pela austeridade, que está alimentando o otimismo de Wall Street, elevando os preços dos títulos e fortalecendo o peso, está provocando um efeito devastador no solo argentino, onde mais de dois mil projetos de obras públicas foram interrompidos para economizar dinheiro, mesmo que algumas delas estivessem quase prontas.

Críticos questionam por quanto tempo os cortes de gastos podem ser sustentados sem danificar permanentemente a economia ou desgastar o tecido social. Eles especulam que, em algum momento, a combinação de queda de renda, perda de empregos, tarifas de metrô mais altas, custos de energia mais elevados e infraestrutura falida poderia minar o mandato de Milei.

Obras de creche paralisadas em Florencio Varela — Foto: Sarah Pabst/Bloomberg

Dois dias depois de Musk bajular Milei, cerca de 40 crianças agasalhadas estavam se equilibrando em um estacionamento frio e a céu aberto nos arredores de Buenos Aires porque o governo havia interrompido as reformas em uma creche.

Chamado de "Pequeno Raio de Sol", a escolinha ficava na cidade de Florencio Varela, atrás de uma cerca branca recém-pintada, só precisando de uma conexão de gás encanado para que as chaves fossem entregues. Mas isso custa dinheiro, e Milei não quis pagar.

— O que está em jogo aqui é a dignidade de milhares de crianças. Elas não sabem que há algo melhor lá fora — disse Carina Andrea Ferreyra, diretora da creche administrada pelo governo, que opera em sua garagem há mais de 18 meses, apesar dela não receber um peso sequer como aluguel.

Claro que ninguém acredita que Milei tenha uma vingança contra as crianças. Em vez disso, o que está acontecendo é o que o presidente alertou os argentinos que aconteceria depois de assumir o cargo prometendo uma "terapia de choque": um período incrivelmente doloroso, embora esperançosamente temporário, de aperto dos cintos que causará sofrimento a curto prazo.

Carina Andrea em creche caseira feita em sua própria garagem — Foto: Sarah Pabst/Bloomberg

Os sacrifícios — uma característica do plano de Milei, não um defeito - têm como objetivo esmagar a inflação que chegou a quase 300% em abril e reparar uma economia que vem apresentando desempenho ruim há décadas.

Os cortes orçamentários de Milei incluíram um verdadeiro massacre à seguridade social e aos salários públicos, juntamente com os subsídios ao consumidor. A administração argentina também reteve cerca de US$ 2 bilhões em pagamentos devidos a empresas de energia como parte dos esforços para preservar dinheiro.

Os primeiros sinais indicam que a austeridade está funcionando. A Argentina recentemente registrou seu primeiro superávit trimestral em 16 anos, celebrado pelo Fundo Monetário Internacional em sua última revisão do programa de resgate de US$ 44 bilhões do país.

Talvez o mais significativo dos dados são os de aumentos mensais de preços, que diminuíram desde que Milei assumiu o cargo, em 10 de dezembro. A inflação, que atingiu 26% em dezembro, caiu para 8,8% em abril. Sua equipe econômica prevê que a tendência continue, e os investidores têm sido recompensados.

Os títulos denominados em dólares da Argentina, com vencimento em 2035, renderam cerca de 65% desde que Milei venceu as eleições em novembro, segundo dados compilados pela Bloomberg.

Mas a agitação social se avizinha como uma ameaça significativa em um país com uma tolerância historicamente frágil à austeridade. Tentativas passadas de apertar o cinto resultaram em manifestações tumultuadas, com arremesso de pedras do lado de fora do congresso.

Ainda assim, duas greves nacionais contra Milei não diminuíram sua popularidade, que permanece entre as mais altas da América Latina. Recentemente, ele foi destaque na capa da revista Time em um artigo sobre os primeiros dias de seu mandato.

— Os mercados estão um pouco mais eufóricos do que pensamos que deveriam estar, dadas as fundamentos macroeconômicos. Mas é verdade que estão enviando uma mensagem clara sobre atingir um superávit fiscal, a qualquer custo — disse Gonzalo Lacunza, economista da Empiria, uma consultoria com sede em Buenos Aires.

Funcionários da cidade de Florencio Varela dizem que foram impedidos em seus esforços de descobrir dos colegas federais o que estava acontecendo com a creche. Depois que a Bloomberg pressionou o governo para comentar, o porta-voz de Milei disse que os funcionários federais estão trabalhando para abrir essa e outras cinco creches.

A creche foi uma das mais de 500 prometidas pela administração anterior, mas nunca concluídas para as famílias, em um país onde mais de 40% da população vive abaixo da linha da pobreza. Rodovias importantes, pontes e projetos habitacionais iniciados por governos anteriores também estão congelados, com pouca clareza sobre quando ou se serão reiniciados.

Milei argumentou que os projetos de obras públicas são um ninho de corrupção, subornos e má gestão e serão conduzidos pelo setor privado daqui para frente. Ele se vangloriou de ter reduzido os gastos com infraestrutura em 87% no primeiro trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior.

— De modo geral e como questão de senso comum, os projetos que estão quase prontos serão concluídos. Em cada novo governo, há uma transição. Estamos nesse processo — disse o Secretário de Finanças, Pablo Quirno.

O colapso das obras públicas fez o setor da construção civil despencar em março. A atividade retraiu 42%, a pior queda desde o auge dos lockdowns da pandemia. A Argentina perdeu 48 mil empregos no setor entre novembro e fevereiro, ou 11% do total no setor, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística.

— As obras públicas passaram de 100 a 0. Nunca vi nada parecido. Mesmo os países mais desenvolvidos têm demandas importantes de infraestrutura, e países menos desenvolvidos como o nosso têm uma infinidade de necessidades — disse Gustavo Weiss, presidente da Câmara de Construção da Argentina.

Governadores provinciais e outros defensores dos gastos com infraestrutura afirmam que, sem estradas, portos, túneis e pontes em funcionamento, a economia não vai funcionar. Os governadores das províncias patagônicas de Rio Negro e Neuquén enviaram um pedido formal ao governo federal neste mês solicitando a transferência de controle de quatro rodovias-chave que afirmam estar se deteriorando, informou o jornal La Nación.

Em Burzaco, um polo industrial a uma hora ao sul de Buenos Aires, a construção de um mergulhão quase pronto em uma rodovia provincial foi interrompida. O projeto visa aliviar o congestionamento em um trecho de quatro quarteirões que pode levar até 20 minutos para atravessar durante o horário de pico.

Obras de mergulhão são abandonadas na província de Burzaco — Foto: Sarah Pabst/Bloomberg

O projeto, financiado pelo governo nacional com cerca de US$ 2,9 milhões (cerca de R$ 15 milhões), deveria ser concluído no ano passado, mas levou mais tempo do que o esperado. A construção foi interrompida em janeiro devido à falta de recursos.

— É uma pena. Cada obra pública é colocada no mesmo saco, quando deveria haver prioridades — disse Jorge Reigada, 60 anos, um comerciante local. Ele entende as razões para o impulso de austeridade de Milei e até aprecia o esforço até certo ponto. Mas ele lamenta sua natureza indiscriminada.

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