Nelson Rodrigues sobre milésimo gol de Pelé: 'a mais linda festa do futebol brasileiro'

O grande escritor e jornalista escreveu, em O GLOBO, sobre o jogo em que Rei chegou ao gol 1.000, em novembro de 1969

Por Nelson Rodrigues — Rio de Janeiro


Com o goleiro Andrada caído ao fundo, Pelé corre para buscar a bola após marcar o milésimo gol no Maracanã Acervo O Globo

À sombra das chuteiras imortais, O GLOBO, 19/11/1969

Amigos, a cidade tem cinco milhões de habitantes, talvez mais. Pois esses cinco milhões deviam estar presentes, anteontem, no Estádio Mário Filho para ver o milésimo “goal" de Pelé. Dirão os idiotas da objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora, atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas.

O que eu acho incrível e, sobretudo, indesculpável é que alguém, vivo ou morto, pudesse ficar indiferente a mais linda festa do futebol brasileiro, em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas casas e os mortos de suas tumbas. Viva a mulher bonita, que não faltou, só as feias não apareceram.

De Edson a Pelé, o rei do futebol

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Não sei se sabem que o sublime crioulo fascina a mulher bonita. As mais lindas garotas estavam lá. Mas falei em festa do futebol e, realmente, foi muito mais do que isso. Era uma festa nacional, uma festa do povo, a festa do homem.

Na fila dos elevadores, o meu primeiro olhar descobriu a grã-fina das narinas de cadáver. Vocês entendem? Ela continua não sabendo quem é a bola, mas o que a maquetizava era Pelé como homem, mito e herói. Bem sabemos que futebol é um esforço coletivo. São os times que ganham, perdem ou empatam. Mas no caso de Pelé, foi um só. Só ele marcou os mil "goals". Nunca se viu nada parecido no mundo. É uma glória maravilhosamente individual, maravilhosamente solitária. Soma-se a isto os "goals" que ele deu na bandeja, "goals" dos quais ele foi o co-autor ou, melhor, foi mais autor do que o autor. Um passe genial vale como um "goal".

Muitos lamentam que tenha sido de "penalty". Meu Deus do Céu, e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a defesa adversária. Ia entrar com a bola e tudo. E sofreu o "penalty". Não foi um companheiro, mas ele próprio quem foi derrubado. Não queria tirar a falta. Mas seus companheiros fizeram uma greve linda contra o "penalty".

Ninguém tocaria na bola. E, então, cem mil pessoas, na gigantesca cadência coral, começaram a exigir: - “Pelé, Pelé, Pelé!”. Uma das que mais se esganiçava era a grã-fina das narinas de cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: “Com esse eu me casava”.

Mas vejam como o grande acontecimento tem a paisagem própria. Como já escrevi, Austerlitz não podia ser disputada num galinheiro. Foi isso que eu disse quando o Santos jogou no campo do EC Bahia. É óbvio que, depois do estádio Mário Filho, todos os campos pequenos se tornaram galinheiros irreconhecíveis. O Pacaembu, por exemplo, é um galinheiro. O campo do Botafogo, do Fluminense ou do Parque Antártica, e centenas, milhares de outros campos obsoletos, são outros tantos galinheiros. Pois bem: - em torno do óbvio, armou-se uma imbelíssima intriga contra mim. Afirmou-se que eu teria dito que a Bahia, e não um campinho, mas a própria Bahia, era um galinheiro. Só muita má-fé cínica, ou muita obtusidade córnea, podia fazer uma distorção tão vil e, ao mesmo tempo, tão idiota.

Homens inteligentes e honrados como Sargentelli, Raul Giudicelli, e outros, entenderam tudo. O Sr. Flávio Cavalcanti, que fôra enganado, fez, em tempo, lealmente a retificação. Mas onde qualquer um veria que o milésimo "goal" exigia um palco como o ex-Maracanã foi anteontem. É aqui e, repito, no Estádio Mário Filho que Pelé teve os seus grandes dias e suas grandes noites. O próprio sabe que é muito mais amado aqui do que em São Paulo.

Quando a bola foi colocada na marca do "penalty", criou-se um "suspense” colossal no estádio. O meu colega e amigo Vilasboas, que não tem nada de passional, estava comovido da cabeça aos sapatos. A louríssima, por mim citada, sentia-se cada vez mais noiva de Pele. O marido, ao lado, parecia concordar com o noivado e dar-lhe sua aprovação entusiástica. Eu não sei como dizer, mas estávamos todos crispados de uma emoção, um certo tipo de emoção, como não conhecíamos.

Ao que íamos assistir já era história e já era lenda, Imaginem alguém que fosse testemunha de Waterloo, ou da morte de César, ou sei lá. No ex-Maracanã, fez-se um silêncio ensurdecedor que toda a cidade ouviu. No instante do chute a coxa de Pelé tornou-se plástica, elástica, vital como a anca de cavalo. Mas havia alguém contracenando com ele no quinto ato da batalha. Era o formidável goleiro argentino Andrada. Em qualquer hipótese, ele ia se tornar uma figura histórica - defendendo ou não. E quando Pelé estourou as redes, o estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro recebeu apoteose tamanha. De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um pouco co-autor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do "goal". Agarrou e beijou a bola. E chorava o divino crioulo, cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos a volta olímpica. Pelé com a camisa do Vasco. Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros.

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