A s palavras da ginasta Simone Biles em Tóquio ainda reverberam no ecossistema do esporte. Ao revelar que precisava parar por um tempo para cuidar da saúde mental, a maior estrela daquela edição (e desta também) dos Jogos ajudou a mudar o paradigma de que atletas são super-humanos e não precisam cuidar das emoções. Exemplo da mudança de mentalidade está na estrutura montada pelo COB, que terá uma equipe recorde de psicólogos e psiquiatras credenciados como parte da delegação em Paris.
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Ao todo, serão cinco psicólogos e um psiquiatra do esporte, além de outros cinco profissionais levados pelas confederações. Também haverá atendimento virtual, com salas preparadas para que os atletas façam sessões remotas.
Ao longo deste ciclo olímpico, o COB intensificou suas ações, segundo Eduardo Cillo, coordenador da área. O time de 17 psicólogos e um psiquiatra participou de laboratórios com jovens atletas, treinamentos e competições pelo mundo. E também esteve presente nos últimos preparativos e na aclimatação pela Europa.
—O COB tem uma equipe de saúde mental ativa há dez anos. Não só o caso da Biles, mas de outros atletas vindo a público falar de depressão, apontando seus limites, mudaram esse entendimento. Há 20 anos, era muito raro ter esses profissionais. Hoje a participação é no dia a dia, dentro da equipe técnica, para fornecer informações para as comissões de forma interdisciplinar — explica Cillo. — Há duas décadas, numa sala com 30, 40 atletas, quando perguntávamos quantos já tinham ido ao psicólogo, apenas uns três levantavam as mãos. Hoje, já são 50%.
O grito de alerta de Biles e de tantos outros atletas que vieram a seguir ecoou em todas as modalidades. Falar abertamente sobre saúde mental vem se tornando tão natural quanto explicar novos saltos e manobras. E, de quebra, tira o estigma de fraqueza.
A skatista Gabi Mazetto, que foi ginasta dos 6 aos 12 anos, conta que precisou “abrir a mente” para entender a necessidade do cuidado com a saúde mental.
— Depressão e ansiedade são o mal do século. É preciso se abrir, independentemente de ser atleta ou não. Ter um psicólogo, fazer terapia, cuidar da saúde mental é uma necessidade geral e não quer dizer que quem faça uso destas ferramentas seja fraco. Não precisa ser louco para ir a um psicólogo. Acho que está mais do que na hora de as pessoas entenderem isso — diz a skatista, que compete no próximo fim de semana.
Mudança na cultura
A dimensão do discurso de Biles se reflete em Paris-2024, acredita a ginasta Jade Barbosa. Aos 32 anos, ela trabalhou com diversos tipos de escolas de treinamento — alguns reconhecidos pelo excesso de cobrança — e percebe a mudança empiricamente.
— Ela pontuou algo que há muito tempo nós passávamos e não tínhamos coragem nem força para fazer da forma que ela fez. Também passamos a entender os nossos limites, assim como os que estão de fora. Estamos acostumados a ir até a fadiga, arrebentar. Mas como determinar isso na saúde mental? Como não é algo que se percebe tão fácil como uma lesão, é preciso ter alguém para te ajudar a diagnosticar — diz Jade, que mostra otimismo: — A cultura da minha modalidade sempre foi difícil, e hoje é completamente diferente. Estamos num outro nível, e Paris terá um olhar e um respeito maiores. Assim como será diferente para as novas gerações. O esporte está mais longevo, e até os treinadores já não pressionam tanto as meninas. Trabalhamos com crianças.
Chico Porah, técnico da seleção feminina de ginástica, viu de perto o impacto das palavras da ginasta americana nos últimos anos. Calar-se diante das próprias questões significava até o fim precoce de uma carreira. Agora, não mais.
— Ao trazer esse assunto à tona, acredito que diminuiu o número de ginastas que se perdem pelo caminho. E vai diminuir. Quando algo do tipo acontece com alguma atleta, investigamos, buscamos maneiras para que ela passe por esta fase com carinho e compreensão. Elas não são máquinas. E se a top da top disse, as outras também podem dizer. E acho que agora se sentem mais tranquilas para falar e não pensam em abandonar o esporte — afirma.
O choro de CR7
Biles, Filipe Toledo — que deu uma parada no circuito mundial de surfe, mas estará em Paris — e Cristiano Ronaldo — que recentemente chorou após perder um pênalti em partida de Portugal na Eurocopa — mostraram que expor vulnerabilidades pode ser o momento de maior demonstração de força.
Calar sentimentos, controlar ansiedade, blindar pressão fazem parte de um papel da psicologia esportiva hoje considerado ultrapassado. O simples treinamento da mente não abraça mais todas as variáveis fundamentais no tão necessário equilíbrio mental.
— Hoje está mais próximo da psicologia clínica. Quem tenta controlar os sentimentos vai se sentir frustrado. Todo mundo tem seu momento de ansiedade, insegurança… Tem que aprender a gerenciar — explica Yan Cintra, especialista em psicologia do esporte, ressaltando que há uma mudança no ar da cultura da medalha a qualquer custo. — Priorizar a saúde mental é uma realidade voltada para o alto rendimento. Ninguém está deixando a medalha totalmente em segundo plano para cuidar do ser humano. Precisa da saúde mental para chegar até o pódio. A Biles não abandonou o esporte, ela entendeu seu limite e parou para voltar mais forte.
Vaga retirada e devolvida
Isaac Souza, dos saltos ornamentais, é o exemplo de como a performance anda de mãos dadas com a saúde mental.
— Depois de Tóquio-2020, eu tive uma recaída mental, um início de depressão. Aquele foi um ano muito conturbado para mim. Conquistei a vaga olímpica no início daquele ano e, depois, a Fina (Federação Internacional de Natação) retirou minha vaga e as de outros atletas. Às vésperas dos Jogos, devolveram. Isso mexeu muito com a minha cabeça, eu não consegui treinar muito bem, não obtive o resultado que queria na Olimpíada — conta Isaac, que reflete: — O ano pós-Olimpíada foi bem ruim, de cabeça mesmo. Nós, atletas de alto rendimento, temos que focar muito na saúde mental. Se tiver que abrir o jogo, abre mesmo. Contar para as pessoas certas que vão te ajudar naquele momento e, depois, quando se sentir confortável, abrir mais, se expor, como estou fazendo agora.