Uns bons 20 anos atrás, assisti a uma apresentação de Daiane dos Santos. Foi no Grêmio Náutico União, o clube onde ela foi formada como ginasta. Eu era estagiário de um jornal em Porto Alegre e fui escalado para cobrir o evento – um campeonato local de solo, nada muito importante, era só ir lá e garantir um texto secundário para a edição do dia seguinte. Quase uma burocracia.
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E de repente, ao ver Daiane se apresentando na minha frente, eu me flagrei com os olhos cheios de lágrimas. Aqueles movimentos (tanta beleza) acionaram em mim alguma sinapse desconhecida e me deixaram profundamente emocionado. Como era possível um ser humano fazer o que Daiane fazia?
Atletas do time Brasil voando alto em Paris
Aquela lembrança, como tantas outras, foi parar no sótão da minha memória por alguns anos. Até o dia em que vi Simone Biles se apresentando nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. De repente, revivi aquela onda de espanto, perplexidade, comoção – e, inocente, não podia imaginar que o mesmo aconteceria cinco anos depois, ao assistir boquiaberto à consagração de Rebeca Andrade pela televisão nas Olimpíadas de Tóquio.
Mas por quê? Qual a raiz desse sentimento?
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Talvez pela mesma razão que um filme, uma música, um livro, um gesto, uma frase nos comova. Talvez porque todos tenhamos um ponto invisível em que identificamos a passagem da beleza para o sublime – e aí já era, estamos derrubados. E talvez porque, no fim das contas, o que está em jogo é a capacidade humana de fazer o indizível: de parecer tão frágil (rosto de criança, nem um metro e meio de corpo) e ser tão assombrosamente forte.
O que Rebeca Andrade nos mostra é a perfeição. O casamento de graça, potência, precisão, elasticidade, suavidade – isso é a perfeição, tem um eco quase divino, é quase um milagre. E aí não faz sentido: se é perfeita, é invencível. Então como alguém pode vencê-la, como aconteceu nesta quinta-feira, na final do individual geral das Olimpíadas de Paris?
Acontece que quando Rebeca Andrade oferece perfeição, Simone Biles retribui com o impossível; quando Rebeca Andrade estica os limites da capacidade humana, Simone Biles os redimensiona; quando Rebeca Andrade faz tudo para ser ouro, Simone Biles lembra que o ouro é dela. Uma das maiores atletas da história brasileira lida com este curioso acaso: é contemporânea de uma das maiores atletas que a humanidade já criou.
É uma pena a impossibilidade de Rebeca levar o título no individual geral em Paris. Ela estava pronta para isso. Mas também é bonito de se ver como foi fechado o roteiro do grande retorno de Simone Biles à cena olímpica – um desses episódios que seriam acusados de inverossímeis se fossem ficção.
A decisão de abandonar grande parte das disputas nos Jogos de Tóquio, para cuidar de sua saúde mental, ajudou a preencher uma personagem complexa – e as melhores personagens não precisam de antagonistas: eles já estão dentro delas. A volta triunfal de Simone Biles em Paris amarra a jornada do herói (da heroína): a figura que, diante de um obstáculo, encontrou uma maneira de se transformar para, ainda mais forte, cumprir sua missão.
Nesse enredo, Rebeca Andrade acabou sendo uma vítima involuntária. Mas ela não dá sinais de se preocupar muito. Em seu sorriso no fim da prova, parecia morar o alívio de quem sabe que fez o possível, que ofereceu a perfeição. E que nos deixou emocionados.