Na quinta (1), poucas horas após a vitória da boxeadora argelina Imane Khelif, as redes sociais foram inundadas de informações falsas apontando que a atleta seria mulher trans, e militantes e políticos da extrema direita compartilharam em massa comentários transfóbicos. Em seguida, diversas páginas saíram em defesa de Khelif, rebatendo as acusações. A guerra narrativa ilustrou como pautas "políticas" da Olimpíada de Paris-2024 vêm mobilizando a internet. Um levantamento feito pela consultoria Bites, a pedido do O GLOBO, mostrou que o episódio do boxe, a medalha de bronze de Rayssa Leal e as reações sobre a cerimônia de abertura foram os momentos olímpicos de maior engajamento online no Brasil.
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Até ontem, os Jogos movimentaram quase 8 milhões de menções virtuais. Segundo o levantamento da Bites, as competições esportivas ainda são o principal ponto de engajamento, e a final de Rayssa Leal foi o ápice. Assim, as personagens mais mencionadas foram Simone Biles, Rebeca Andrade, Jade Barbosa e a própria fadinha. A análise se encerrou antes de captar todas as reações sobre a judoca Bia Souza.
No entanto, o relatório confirmou que discussões políticas e religiosas tiveram grande impacto no volume de publicações, em especial na cerimônia de abertura e no caso da boxeadora feminina. O beijo entre a judoca italiana Alice Bellandi, que celebrava a medalha de ouro, e a sua namorada, a brasileira Jasmine Martin, também agitou as redes. O momento aconteceu a poucos metros da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, de extrema direita.
Em todo o mundo, bolhas digitais da extrema direita espalharam a narrativa de que a desistência da italiana Angela Carini, que definiu a vitória de Khelif, seria uma imposição da "cultura woke", conceito usado por militantes de direita para criticar políticas progressistas, como ações identitárias de raça ou gênero. A fake news surgiu porque no mundial de boxe do ano passado, Imane Khelif e uma boxeadora taiwanesa foram desclassificadas por terem reprovado um "teste de verificação de gênero". Mas a federação internacional de boxe (IBA) nunca deu detalhes.
A italiana afirmou que desistiu da luta por causa de intensas dores no nariz e nunca fez referência a uma suposta questão de gênero. O Comitê Olímpico Internacional (COI), que aprovou a participação da argelina, se manifestou e disse que ela e a taiwanesa Lin Yu Ting “sofreram ataques enganosos em redes sociais”, e que os procedimentos a que foram submetidas pela IBA são “pouco claros e arbitrários”.
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No Brasil, políticos bolsonaristas inflaram as redes e até mesmo Jair Bolsonaro entrou na onda. Na sua conta do X (antigo Teitter), o ex-presidente fez referências a projetos de lei na sua gestão que tentavam limitar os direitos de pessoas trans e afirmou que "mulheres vêm sendo roubadas de seus direitos por homens que fingem ser mulheres". Outras publicações com muitos impulsionamentos foram dos senadores Damares Alves (Republicanos) e Flavio Bolsonaro (PL).
Em seguida, diversas explicações sobre a real situação de Imane Khelif foram compartilhadas por páginas progressistas. Segundo a Bites, a direita não conseguiu dominar o assunto, que terminou dividido entre os dois polos. O fato é que o tema trouxe o terceiro maior pico das Olimpíadas na internet brasileira, atrás apenas da cerimônia de abertura e da final de Rayssa Leal.
— Precisamos entender que não há mais temas de grande impacto na opinião pública fora do contexto da polarização. A direita sempre aproveitará toda e qualquer oportunidade para amplificar a sua agenda — afirmou Manoel Fernandes, diretor da Bites.
As manifestações começaram logo na cerimônia de abertura. Em meio às menções sobre o evento, críticas a uma suposta reprodução da Santa-Ceia, emulada, na cerimônia, por personagens drags, tomaram as redes. Uma das publicações com mais impulsionamentos foi da ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel, que citou “desrespeito ao Cristianismo". A direita bolsonarista, aponta a Bites, conseguiu impulsionar o assunto.
A Igreja Católica Francesa reclamou e, diante de tanta polêmica, a porta-voz da Olimpíada Paris-2024, Anne Descamps, pediu desculpas e afirmou que nunca houve intenção de ofensas e sim de celebrar a diversidade e a tolerância.
Antropólogo e professor de estudos de mídia da Universidade da Virgínia, David Nemer explica que a mobilização da extrema-direita começou antes mesmo dos Jogos. Segundo ele, o fato da Olimpíada ser em Paris acendeu um "alerta" sobre esses grupos, que enxergam a França como uma referência de valores progressistas, como defesas de minorias e da liberdade.
Com a exaltação da diversidade na cerimônia de abertura, essas bolhas responderam com o discurso do pânico moral, campo em que mais ganham espaço no Brasil, diz Nemer.
— Eles querem falar que o que está acontecendo na Olimpíada é o que essa "geração da esquerda" quer no mundo inteiro, uma suposta revolução "woke" e identitária, que iria destruir a família tradicional e os preceitos cristãos.
O especialista acredita que o discurto é bem sucedido quando "fura a bolha". Ele cita o caso da boxeadora como exemplo.
— Trazem confusões conceituais para falar que ela é homem e justamente ativar esse pânico moral. É isso que cria o medo nas pessoas e faz com que engajem, compartilhem e acreditem no conteúdo — explicou Nemer.
Além do apelo por ser uma das atletas mais famosas do Time Brasil, Rayssa Leal atrai o engajamento virtual de cristãos. Evangélica, a fadinha usou a linguagem de libras para dizer "Jesus é o caminho, a verdade e a vida" após a sua manobra na final. O caso gerou uma investigação do COI, que proíbe manifestações religiosas. Nas redes, evangélicos acusaram perseguição.
Manifestações religiosas e políticas são vetadas pelo COI como forma de evitar conflitos, explica Katia Rubio, professora da Faculdade de Educação da USP e especialista em Olimpíadas. Ela diz, porém, que não há transparência sobre as regras e os limites e que os julgamentos são subjetivos e definidos pelos contextos.
— É muito velado, o COI interpreta como bem entende, e é aí que mora o perigo. A Rebeca Andrade solta seu cabelo ao final de cada prova e a Simone Biles usa um coque que não é tradicional. Elas usam da visibilidade da Olimpíada para afirmação identitária. Daqui a pouco vão falar que não pode — se preocupa Rubio, que, por outro lado, diz que esse controle do COI sobre os atletas se tornou menos absoluto. — Acho que os atletas chegam a Paris mais empoderados que nunca. Cada vez mais se dão conta de que sem eles o movimento olímpico não existe.