Lei que restringe aborto no Texas é violação 'descarada' do direito das mulheres, diz Biden

Medida aprovada pelo estado proíbe que gestações sejam interrompidas após a sexta semana, não abrindo exceção nem para casos de estupro ou incesto

Por O Globo; New York Times


Manifestantes pegam cartazes contra lei que restringe o aborto no Texas; 'Aborto é questão de saúde', diz cartaz SERGIO FLORES/AFP/29-5-21 — Foto:

Entrou em vigor nesta quarta-feira no Texas uma lei que proíbe a realização de abortos após seis semanas de gestação, a norma mais restritiva aprovada nos Estados Unidos desde que o procedimento foi legalizado em 1973. Não se trata de um fenômeno pontual: levando em conta apenas o primeiro semestre, 2021 já é o ano com mais medidas antiaborto que receberam o sinal verde de Legislativos estaduais no país em 48 anos.

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A lei texana representa uma proibição quase total ao aborto antes mesmo que muitas mulheres descubram que estão grávidas. Não há exceções para gestações causadas por incesto ou estupro — a única brecha é quando a saúde da gestante está em risco, mas ainda assim é exigida uma prova escrita de um médico atestando o problema.

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"Esta lei draconiana do Texas viola descaradamente o direito constitucional determinado por Roe versus Wade e mantido por quase meio século", disse o presidente Joe Biden, em nota, criticando a decisão e afirmando que o impacto da medida será pior para famílias pobres e minorias raciais.

Roe versus Wade é o nome do caso que levou ao veredicto da Suprema Corte que há quase 50 anos estabeleceu o direito constitucional ao aborto nos EUA até o período entre a 22ª e a 24ª semanas de gestação, quando o feto tem mais chances de sobreviver fora do útero. Biden disse ainda que seu governo está "profundamente comprometido" em manter a jurisprudência, considerada um marco para os direitos reprodutivos.

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O veredicto sempre foi contestado por setores ligados ao Partido Republicano, mas a pressão aumentou diante da composição atual da Suprema Corte, que tem seis juízes conservadores e três progressistas, graças às três indicações feitas pelo ex-presidente Donald Trump. Segundo o Instituto Guttmacher, uma organização que defende os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, 90 restrições estaduais ao aborto foram implementadas entre janeiro e junho deste ano. A maioria delas, contudo, enfrenta recursos judiciais que barram sua implementação imediata.

Este era o caso da lei texana, sancionada pelo governador Greg Abbott em maio. Ativistas e organizações que representam as clínicas onde é feita a interrupção da gravidez entraram com um pedido de emergência para que a Suprema Corte bloqueasse a legislação, mas o prazo terminou à meia-noite, sem que o tribunal máximo americano se pronunciasse.

"Entre 85% e 90% das pessoas que realizam abortos no Texas têm pelo menos seis semanas de gestação, o que significa que esta lei proibiria quase todos os abortos no estado", protestou a União das Liberdades Civis Americanas (Aclu, na sigla em inglês), chamando a lei de "descaradamente inconstitucional".

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'Batimento cardíaco'

O limite temporal traçado pela norma não é aleatório, já que grupos antiaborto argumentam que na sexta semana de gestação já seria possível ouvir o "batimento cardíaco" do feto, o que é refutado por especialistas. Segundo o conselho de obstetras e ginecologistas dos EUA, o que se detecta nesta fase é apenas "uma porção do tecido fetal que se tornará o coração à medida que o embrião se desenvolve".

A legislação foi redigida visando barrar possíveis contestações judiciais: habitualmente, um pedido de recurso nomearia como réus autoridades estaduais. O texto da medida, no entanto, proíbe que funcionários públicos a implementem, pondo a responsabilidade em indivíduos que realizem, “ajudem ou viabilizem” o aborto.

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A paciente não pode ser processada, mas os médicos, funcionários de clínicas, conselheiros e até mesmo motoristas que levarem a paciente para o procedimento passam a ser passíveis de processos. Qualquer americano, independentemente de ter ou não relação com caso, poderá dar início à ação legal e, se vencer, terá o direito de receber até U$ 10 mil e ter seus gastos com a ação reembolsados pela pessoa processada.

Ao New York Times, Amy Hagstrom Miller, gerente executiva da Whole Woman's Health, responsável por quatro clínicas no Texas, disse que suas instalações já começaram a cumprir a lei, devido ao risco de processos contra seus funcionários.

— É preocupante. Isso vai além de qualquer coisa que qualquer um de nós imaginou — disse Hagstrom Miller.

Na unidade da cidade de Fort Worth, afirmou a diretora sênior Marva Sadler, a véspera da entrada em vigor da lei foi "um dia de caos organizado", com pacientes esperando cinco ou seis horas para realizarem os procedimentos — no total, a clínica tratou 117 mulheres na terça-feira, bem mais que a média habitual. Ela estimou, contudo, que apenas 20 das 79 pacientes marcadas para esta quarta poderiam ser atendidas.

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'Implementação imediata'

Para ativistas e profissionais da saúde, a lei do Texas é inconstitucional, mas o recurso que está hoje na Suprema Corte não diz respeito a isso, mas sim se a legislação poderia ser contestada em um tribunal federal. O defensores da medida argumentam que recursos devem ser apresentados apenas na esfera estadual.

O tribunal máximo da Justiça americana, no entanto, precisará decidir em sua próxima sessão, que começa no mês que vem, sobre a constitucionalidade de uma lei do Mississippi que baniria todas as gestações a partir da 15a semana. Um veredicto favorável à medida, apontam especialistas, pavimentaria o caminho para reveses significativos à decisão no caso Roe versus Wade.

O exame do caso do Mississippi marcará a primeira decisão dos atuais magistrados sobre o assunto desde que os conservadores conseguiram a supermaioria na Suprema Corte, em 2020.

Há ainda uma série de outros processos que podem chegar à instância máxima: até julho, segundo o Instituto Guttmacher, oito estados haviam aprovado vetos efetivos ao aborto, que aguardam as definições judiciais em várias instâncias para serem implementados. Algumas das medidas mais duras são do Arkansas e de Oklahoma. Elas vetam a interrupção durante qualquer ponto da gestação, abrindo exceções apenas quando a vida da paciente está em risco.

A Carolina do Sul e Idaho aprovaram vetos similares ao do Texas, limitando o a aborto legal às seis primeiras semanas de gestação. Em Dakota do Sul, a interrupção da gravidez foi vetada caso haja um diagnóstico de síndrome de Down, e no Arizona, em casos de anormalidades fetais. O estado faz ainda parte da lista de oito unidades federativas, entre elas Indiana, Montana e Ohio, que aprovaram mais restrições a remédios abortivos.

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