Giorgia Meloni, da extrema direita, é nomeada primeira-ministra da Itália

Primeira ultraconservadora a comandar o país desde Mussolini, ela acena à União Europeia e aos mercados em nomeações para as pastas de Economia e Relações Exteriores

Por O Globo — Roma


Presidente da Itália, Sergio Mattarella, encarrega Giorgia Meloni de formar governo Reprodução

A líder do partido de extrema direita Irmãos da Itália (FdI), Giorgia Meloni, será a nova primeira-ministra do país após aparar as arestas dentro da coalizão tripartite de direita que venceu as eleições legislativas de 25 de setembro. Depois de três semanas de negociações, ela foi encarregada nesta sexta-feira pelo presidente italiano, Sergio Mattarella, de chefiar um novo governo, o 68º que o país verá em 76 anos.

Salvo uma reviravolta inesperada até a posse do novo Gabinete, prevista para este sábado, Meloni será não só a primeira mulher a comandar um governo italiano, mas a primeira política de extrema direita desde Benito Mussolini a chegar ao poder no país em 1922 — filha política de uma organização herdeira das ideias do ditador, ela até hoje se recusa a condenar seus atos. Governará ao lado da Liga de Matteo Salvini, outro partido da direita radical, e do Força Itália, sigla de centro-direita do ex-premier Silvio Berlusconi, confirmando uma aliança firmada para a campanha eleitoral.

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Os líderes dos três partidos foram recebidos por Mattarella pela manhã para as tradicionais consultas sobre a formação de governo, em que disseram em uma reunião de 11 minutos terem chegado a um consenso. Às 16h30 (11h30 no Brasil), Meloni retornou ao Palácio do Quirinale, recebendo o endosso do presidente para os nomes de seu Gabinete após uma reunião de mais de uma hora.

— Desta vez o tempo foi curto, menos de um mês após as eleições: pudemos proceder devido à clareza do resultado eleitoral — afirmou Mattarella, referindo-se às tradicionalmente longas negociações para formar governos no país. — Felicidades ao novo Executivo.

Em seu primeiro pronunciamento após a reunião, Meloni anunciou o novo Gabinete, com nomes que acenam à União Europeia e aos mercados nos dois cargos mais proeminentes: o ex-presidente do Parlamento Europeu Antonio Tajani, do Força Itália, comandará o Ministério das Relações Exteriores. Já Giancarlo Giorgetti, da ala moderada da Liga, ficará com a Economia, após Meloni se deparar com dificuldades para encontrar um tecnocrata disposto a assumir o desafio de guiar as contas de um país onde a dívida pública equivale a 145% do Produto Interno Bruto (PIB).

Atual ministro de Desenvolvimento Econômico no governo do premier demissionário Mario Draghi, Giorgetti terá uma missão complexa, que é executar o plano de recuperação pós-Covid de € 200 bilhões (R$ 1,02 tri) elaborado em parceria com a UE. A medida exige a adoção de reformas no Estado, tema que deve ser um dos vários a provocar atritos na coalizão nascente — Meloni sugeriu que vai rever alguns dos programas já anunciados, enquanto o Força Itália quer que os compromissos sejam executados em sua totalidade.

Os precedentes não são dos melhores para a coalizão que chega ao poder em um país onde cada governo dura em média 14 meses. O governo anterior durou 15 meses: Draghi caiu em julho após perder o apoio da Liga, do Força Itália e do antissistema Movimento 5 Estrelas (M5S). Todos os principais partidos italianos integravam a coalizão do ex-presidente do Banco Central Europeu, com a exceção notável do FdI, o que permitiu a Meloni se posicionar como oposição e vencer as eleições de setembro.

No pleito, o FdI conquistou mais de 26% dos votos, multiplicando por seis o apoio obtido na eleição anterior, quatro anos atrás. O partido terá sozinho 119 assentos na Câmara e 66 no Senado, mais que o dobro da soma dos seus parceiros de coalizão (a Liga terá 66 e 29 e o Força Itália, 45 e 19, respectivamente).

Composição do novo Parlamento da Itália — Foto: Arte O Globo

A coalizão e seus parceiros nanicos terão juntos 237 deputados e 117 senadores, liderando com folga a maioria em ambas as Casas do Parlamento — o bloco de centro-esquerda chefiado pelo Partido Democrático (PD) tem respectivamente 85 e 44 assentos. Meloni fará seu primeiro discurso formal após ser empossada, mas deu uma breve declaração após a primeira reunião com Mattarella:

— É uma indicação unânime da aliança de direita. Sou a pessoa indicada a formar o novo governo — disse ela, ao lado de Salvini e Berlusconi, que mais tarde tuitaram dizendo respectivamente que o grupo está pronto para "guiar a Itália pela mão" e que "o próximo Executivo será capaz de conduzir o país ao crescimento".

Vazamento de áudio

Os problemas internos vieram à tona já na votação que confirmou o novo presidente do Senado, Ignazio La Russa, do FdI. O Força Itália absteve-se de participar do voto, em uma tentativa de barganhar cargos no Gabinete. Berlusconi, que tem contra si vários processos judiciais, reivindicava a indicação do ministro da Justiça. No final, deu o braço a torcer, e o cargo ficará com Carlo Nordio, do FdI.

O acordo para a formação do Gabinete também foi tumultuado por um áudio vazado do ex-premier, no qual ele exalta sua amizade com Vladimir Putin: diz que recebeu 20 garrafas de vodca de presente e que trocaram "cartas muito doces" após o presidente russo completar 70 anos no mês passado. No mesmo áudio, contudo, Berlusconi afirma ser "contra qualquer iniciativa" na guerra na Ucrânia, e sua equipe diz que a declaração sobre o presente se referia a algo que aconteceu "há muito tempo".

Putin e Berlusconi têm uma amizade de longa data, e Salvini também já deu declarações simpáticas a Moscou, o que levantou preocupações de que o novo governo retire o apoio italiano a Kiev. Coube à pós-fascista Meloni, paradoxalmente, reafirmar sua lealdade à Otan, a aliança militar encabeçada pelos EUA, e à UE, apesar de antigas declarações eurocéticas.

Ainda assim, a ascensão da extrema direita na terceira maior economia do bloco deixa a UE em alerta. Líderes do continente vêm se mostrando prontos a trabalhar com ela, como disseram o francês Emmanuel Macron e o alemão Olaf Scholz após uma cúpula do Conselho Europeu, nesta sexta.

Frente populista

A confiança, contudo, não parece ser completa — o próprio Macron, segundo a imprensa francesa, supostamente disse a aliados que está preocupado. A ascensão da extrema direita italiana faz parte de uma segunda onda de ascensão dessa vertente política na Europa, com seu ingresso informal na nova coalizão de governo na Suécia e o forte desempenho do partido de Marine Le Pen nas eleições parlamentares francesas de junho. Além disso, a ultradireita nacionalista continua dando dores de cabeça à UE nos governos da Polônia e da Hungria — nesta última, o premier Viktor Orbán foi reeleito neste ano.

O temor é que essas forças se juntem, tirando proveito de um momento de crise econômica e energética, para criar uma frente populista dentro do bloco, com potencial para atrapalhar a elaboração de planos para a economia, meio ambiente e segurança regional. Os medos dentro da Itália são similares: analistas temem que a coalizão de Meloni mine várias das normas que regem a sociedade há décadas.

Meloni chegou ao poder com um plano de governo que tem como linhas centrais medidas duras de combate ao crime, proteção dos “valores tradicionais" e endurecimento com a imigração. Apesar de dizer que não é homofóbica, reiterou, em diversas ocasiões, que sua concepção de família envolve apenas um homem e uma mulher, em comentários que provocaram temores na comunidade LGBT sobre uma potencial retirada de direitos hoje garantidos.

A posse do Gabinete abrirá caminho para debates mais amplos no Parlamento, nos quais a nova premier apresentará seu plano de governo e enfrentará votos de confiança. Com o controle que sua coalizão tem sobre a Câmara e o Senado, os procedimentos não devem trazer grandes problemas.

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