Crisma ou extrema unção? Ascensão de Charles III marcará era de transição para uma nova monarquia

Maior desafio do novo rei é fazer mudanças para que tudo fique como está

Por Bruno Astuto


Fã da família real leva reprodução em tamanho real do rei Charles III ao The Mall Sebastien Bozon/AFP

Os reis britânicos são os únicos que ainda são coroados, entre as 12 monarquias que restaram na Europa. E não são proclamados, indicados nem muito menos eleitos, mas ungidos. Essa unção com óleo consagrado em Jerusalém é um sacramento, o ápice religioso de uma cerimônia que não é meramente política, tampouco laica. A tradição, realizada para confirmar que o soberano era nomeado diretamente por Deus, baseia-se no Antigo Testamento, em que é descrita a unção de Salomão por Zadoque, o Sacerdote, e Natã, o Profeta.

Mudanças no ar

Sua importância é tamanha, que se trata do único ritual da coroação de amanhã que escapará aos olhos da televisão e da internet, protegido por um dossel. Embora tenha convidado, para abraçar a multiculturalidade de seus súditos, representantes das diferentes fés que compõem o Reino Unido e a Comunidade Britânica de Nações (Commonwealth), Charles III é oficialmente o chefe da Igreja Anglicana.

O que todos especulam é se o azeite, que tocará as mãos, o peito e a cabeça do 40º rei coroado na Abadia de Westminster terá o perfume festivo de uma crisma ou a espessura turva da extrema-unção de um regime anacrônico.

Não há, é bom frisar, nenhuma novidade nesse tipo de ilação. São muitos os exemplos históricos de dúvidas sobre a capacidade dos soberanos recém-chegados ao trono: em 1661, o último rei Charles penou para se consolidar, depois de uma década da ditadura republicana de Cromwell; o avô do atual Charles, George VI, foi um suplente-surpresa depois da abdicação do irmão; Vitória e Elizabeth II, sua tataravó e mãe, respectivamente, enfrentaram o preconceito contra a tenra idade e o gênero. Não há, portanto, coroação sem medo ou incertezas. É uma nova era que se inicia, com mudanças nas dinâmicas da corte e na percepção e no afeto dos súditos.

E as mudanças estão no ar. O rei promoveu um enxugamento do tempo da cerimônia e da lista de convidados (pouco mais de 2 mil, em comparação aos 8 mil presentes à coroação de sua mãe, em 1953), determinou um elenco mais inclusivo nos bancos da abadia e pediu aos aristocratas que evitassem trajes cerimoniais ou coroas, em favor de roupas que refletissem o mundo moderno. A reclamação dos interessados foi tamanha, que, na última quarta-feira, os salamaleques tiveram que ser liberados.

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Rei Charles será oficialmente coroado neste sábado (6)

Racismo e tabloides

Mas há novidades mais profundas. A ex-amante e atual esposa Camilla, apontada pela popularíssima, inesquecível e trágica princesa Diana como a grande responsável por sua infelicidade (e chamada de “vilã” pelo enteado Harry, em sua recente autobiografia) ganhará o desfecho mais surpreendente dessa novela real. Será a primeira vez que uma rainha com um divórcio no currículo será coroada e ungida, pajeada pelos netos do casamento anterior. Imagine que, há 87 anos, tempo ínfimo numa monarquia milenar, o tio-avô de Charles, o rei Eduardo VIII, teve de abdicar do trono para se casar com o amor de sua vida, a americana duplamente divorciada Wallis Simpson.

Outra americana será amplamente mencionada amanhã, apesar da ausência: Meghan Markle, a nora que Charles levou ao altar em 2018, numa cerimônia que representaria novos tempos de inclusão e representatividade na monarquia britânica. Um ano e meio depois, puxada pelo marido que temia o mesmo destino da mãe, ela debandou da “Firma”, acusou um membro da família real de racismo e denunciou a conivência dos cortesãos com a mídia de fofocas. Assim como Camilla experimentou a rejeição da opinião pública quando o triângulo amoroso real veio à tona, a duquesa de Sussex vive hoje na desgraça popular. Eis mais uma tradição que, tal qual a coroação, sobrevive no mundo contemporâneo: mulheres queimadas na praça como bruxas e apontadas na rua, como se os homens não tivessem qualquer responsabilidade sobre seus atos.

Pela inexorabilidade do tempo, este reinado está fadado a ser de transição. Será mais sobre o que Charles deixará ao sucessor, William, do que sua governança em si. Se puder colocá-la em prática, o reino terá no trono um homem que se mostrou um excelente administrador, aumentando significativamente os rendimentos do Ducado da Cornualha enquanto foi príncipe de Gales, construindo um império de alimentos e produtos orgânicos e comandando suas heranças seculares com a cabeça de um CEO.

Pai e filho estão preparando o terreno para a sobrevivência do próprio emprego, reduzindo o número de membros oficiais da família real, pensando não somente em economia, mas também num espaço amostral mais seguro, com maior controle sobre os escândalos dos parentes. Haverá cada vez menos tolerância para outro Harry ou outro Andrew, o irmão do rei que se viu envolvido numa rede de prostituição, sob acusação até de pedofilia. O próprio Charles sabe como é estar do lado de lá — a baixaria de seu divórcio acarretou à monarquia índices recordes de impopularidade em 1992, apelidado por sua mãe “annus horribilis”.

Debaixo dos 2,23kg da pesadíssima coroa de Santo Eduardo, estará amanhã a cabeça de um homem de leitura nada óbvia, que há 70 anos se prepara para entrar em cena: é cercado de valetes e ajudantes, mas quer ser visto como um profissional dedicado ao serviço; é um precursor da defesa das boas práticas ambientais, mas circula de avião particular; apregoa a sobriedade em meio a uma enorme crise de custo de vida, mas surgirá coberto por quilos de ouro e diamantes; lutou a vida toda para ser ouvido, mas, se emitir uma opinião não aprovada pelo Parlamento, pode causar uma crise constitucional; é considerado pelos mais próximos como romântico, artístico e sonhador, mas o cargo lhe exige frieza; gosta de ser visto como uma mente progressista, mas encarna o símbolo máximo de um regime cujo chefe de Estado é escolhido por critérios de sangue e primogenitura.

Um ‘leopardo’ britânico

Seu maior desafio, no entanto, é o mesmíssimo de todos os seus antecessores, o que me traz a evocar a famosa frase do príncipe de Falconeri no romance “O leopardo” (1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, obra-prima sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento italiano no século XIX.

Disse o personagem: “Tudo deve mudar, se quisermos que tudo fique como está”.

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