Polônia desperta críticas internacionais após aprovar lei contra 'influência russa' que ameaça inabilitar líder da oposição

Ex-premier Donald Tusk, principal crítico do governo, é visto como alvo principal da medida controvertida; país terá eleições legislativas no segundo semestre

Por O Globo, El País — Varsóvia


Presidente da Polônia, Andrzej Duda, assina acordo durante cúpula do Conselho Europeu em Reykjavik, na Islândia Christophe Archambault/AFP

O ultraconservador governo polonês deu sinal verde na segunda-feira para uma comissão de combate à "influência russa" no país, algo que críticos domésticos e internacionais afirmam abrir caminho para a perseguição de opositores às vésperas de eleições legislativas previstas para outubro. Um dos maiores apoiadores dos esforços ucranianos para repelir os russos, o presidente Andrzej Duda é acusado de explorar o nacionalismo e o sentimento anti-Kremlin para aprofundar a erosão democrática em Varsóvia.

Aprovado pelo Parlamento na sexta e assinado por Duda na segunda, o controvertido projeto determina a criação de um grupo especial para investigar a influência russa no período entre 2007 e 2022 em políticos, jornalistas e outros cidadãos poloneses que possam ter favorecido os interesses de Moscou. A iniciativa foi apelidada de Lei Tusk pela imprensa independente e pelos críticos de Duda, em referência ao ex-primeiro-ministro Donald Tusk (2007-2014), principal nome contrário ao governo e apontado pelos opositores como o alvo real da legislação.

Líder do partido conservador liberal Plataforma Cívica, Tusk acompanhou na sexta a votação da tribuna de convidados do Parlamento, já que neste momento não tem cargo público. Ex-presidente do Conselho Europeu, o político recebido por vaias e gritos de "vá para Berlim", pois os ultraconservadores poloneses — razão antiga de dores de cabeça para os europeus — também o acusam de ser demasiadamente pró-Alemanha.

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Após a aprovação da lei por 234 votos a favor e 219 contra, o ex-premier chamou de "covarde" quem "viola as boas normas parlamentares e os direitos fundamentais da democracia por medo de estar perdendo poder". Desde que chegou ao poder em 2015, o partido de Duda, o Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês), exerce significativa influência política sobre as instituições do Estado — as intervenções para minar o Judiciário, em particular, despertam preocupação com o Estado de direito.

Tusk convocou a população para manifestações no domingo, aniversário das primeiras eleições parcialmente livres do país, em 1989, após as décadas na Cortina de Ferro. Na segunda, após Duda assinar a legislação, o ex-presidente do Conselho Europeu convidou o rival para a "consulta pública em 4 de junho", referindo-se ao ato:

"Ele nos ouvirá e nos verá bem das janelas de seu palácio. Será que ele nos verá?", escreveu no Twitter.

A comissão em questão será formada por membros indicados pela Câmara e responderá diretamente ao governo e poderá investigar e impor penas de até 10 anos de inelegibilidade para cargos que deem acesso a fundos públicos e informações sigilosas. Suas competências incluirão ainda rescindir licenças de porte de armas para os investigados e impô-los multas, além de capacidade de reverter decisões administrativas e empresariais.

A capacidade simultânea de investigar, acusar, julgar e punir é vista como problemática pelos críticos, que rechaçam também o que afirmam ser uma pouco clara definição do que significa "influência russa". A comissão parlamentar de Administração e Assuntos Internos se mostrou contrária à norma na semana passada, votando a favor de um veto dado pelo Senado, onde a oposição tem a maioria.

O Defensor do Povo, Marcin Wiacek, cuja função no país inclui defender os direitos fundamentais da população, também se posicionou contra a abrangência no novo órgão, afirmando que não cabe a ele "administrar Justiça, isso apenas os tribunais fazem". Constitucionalistas também afirmam que o projeto prejudica o direito a um julgamento justo, e há especialmente um medo que seja usado para minar o trabalho de magistrados independentes.

Nesta terça, foi vez do governo americano e da União Europeia (UE) expressarem suas ressalvas com a comissão. Em Bruxelas, o comissário europeu de Justiça, Didier Reynders, disse que há uma "preocupação especial" com a medida que "permitirá [à Polônia] privar seus cidadãos do direito de serem titulares de cargos eletivos".

De acordo com Reynders, a Comissão Europeia, braço Executivo da UE, "não hesitará em tomar iniciativas se a lei entrar em vigor e levantar esse tipo de problema". Na noite de segunda, o Departamento de Estado americano emitiu uma nota para demonstrar preocupação de que a norma "possa ser usada para interferir em eleições livres e justas" e para "bloquear candidaturas de políticos de oposição sem que haja o devido processo".

Após Duda se distanciar da linha oficial do PiS em algumas decisões recentes, havia algumas dúvidas se o presidente assinaria ou não a lei. Alguns críticos esperavam se não um veto presidencial, mas ao menos que a lei fosse enviada para a avaliação do Tribunal Constitucional. O presidente optou, contudo, pelo sinal verde — a norma entrará em vigor uma semana após sua publicação — e por enviá-la em sequência para a análise.

Com as bandeiras da Polônia, da UE e da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan), em suas costas, Duda defendeu diante das câmeras a criação de um órgão similar no bloco europeu, e confiou ao seu primeiro-ministro, Mateusz Morawiecki, a tarefa de elaborar uma proposta para concretizá-lo. O presidente disse que a iniciativa busca "melhorar a transparência" e negou que a comissão dê poderes para eliminar alguém da vida pública.

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, as relações com a Rússia apenas se deterioraram e qualquer indício de que alguém possa ter se favorecido da relação com o invasor é alvo de ataque. Na segunda, após a decisão de Duda vir à tona, Borys Budka, vice-presidente do Plataforma Cívica, foi ao Twitter acusar Jaroslaw Kaczynski, presidente do PiS, de lançar políticas a favor do Kremlin:

"Ele explodiu por dentro a União Europeia, admirou Trump, construiu alianças com políticos pró-Putin e tornou o setor de energia dependente do carvão russo”, escreveu.

Suposta proximidade com Moscou

Em resposta, o governo publicou uma lista detalhada de eventos ocorridos durante o governo Tusk que supostamente seriam indícios de políticas pró-Rússia. Por meio do um porta-voz Piotr Müller, questionou "quem visitou a Rússia primeiro e depois a Ucrânia em 2008 [ano da guerra na Geórgia]? Quem em 2008 o portal russo Gazeta.ru chamou de 'nosso homem em Varsóvia'? Quem caminhava com Putin no píer de Sopot em 2009?".

"Quem disse em 2015 que a Nord Stream 2 era um 'acordo de empresas privadas'?", completou ele, referindo-se ao gasoduto pronto, mas nunca inaugurado, que aumentaria o fluxo de petróleo russo para a Alemanha, em um ataque duplo contra o que considera ser uma aproximação demasiada de Moscou e Berlim.

O jornalista e ex-apresentador Szymon Holownia, líder da formação de centro Polônia 2050 — que, em coalizão com um partido agrário, é apontada por pesquisas como a terceira força política — acusou Duda de "levar ao limite a guerra civil" na sociedade polonesa. No Twitter, disse que "quando mais necessária é a paz, a verdade e a informação verificada, a fábrica de mentiras pré-eleitorais do PiS foi alegremente aberta", acusando Duda de "envenenar a democracia polonesa".

Robert Biedron, eurodeputado de Lewica (A Esquerda), classificou na mesma rede social a aprovação da lei como "um ato vergonhoso e irresponsável". Segundo ele, "as consequências para a democracia polonesa e para o sistema jurídico serão verdadeiramente devastadoras".

Em 2021, o retorno de Tusk à política polonesa após seu período à frente do Partido Popular Europeu aumentou em mais de 10 pontos o apoio à sua legenda polonesa, transformando-o no principal alvo do PiS e de sua máquina midiática. Em abril, o Ministério Público, chefiado pelo ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, abriu uma investigação contra o líder da oposição por suposto abuso de poder enquanto ele era primeiro-ministro. Nas eleições legislativas previstas para outubro, as sondagens mostram resultados muito apertados e a mobilização será fundamental.

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