Ressentimentos da reunificação da Alemanha turbinam a extrema direita no país

Disparidades econômicas e sociais ainda são percebidas entre o Leste e o Oeste, e a falta de perspectivas é terreno fértil para o surgimento de discursos extremistas

Por — Berlim


Detalhe em parque de Berlim marca local onde ficava um trecho do muro que dividia a cidade Rodrigo Camarão

A soljanka, uma sopa de origem russa comum nas casas da antiga República Democrática da Alemanha (RDA), leva todas as sobras de comida e alimentos em conserva que estão na geladeira. A receita, inspirada pela escassez de ingredientes, é capaz de ensinar mais sobre a vida diária da ex-Alemanha Oriental do que toda a propaganda oficial controlada pelo partido comunista durante 40 anos. Já o cardápio do bar Schwarzes Café, aberto durante toda a madrugada ao lado da elegante Savigny Platz, em Charlottenburg — no coração de onde ficava a Berlim Ocidental — tem o tempero que uma vida livre, democrática e boêmia poderia oferecer.

Hoje, 33 anos depois da reunificação da Alemanha, que entrou em vigor em 3 de outubro de 1990, o Schwarzes Café continua sendo uma “instituição do Ocidente”, como diz o professor de língua alemã Klemens Schütz. Já a soljanka servida no Volkskammer, tradicional restaurante especializado em pratos da antiga RDA, no então lado soviético de Friedrichshain, parece ter o sabor mais azedo para os moradores do Leste.

Ainda que as diferenças socioeconômicas da população do Leste e do Oeste tenham encolhido, conforme mostram dados oficiais do governo federal sobre o processo de reunificação em um só país, já é possível medir algo nos cidadãos da antiga RDA que chama a atenção: um ressentimento crescente. E isso pode ser um dos combustíveis do avanço da extrema direita no país, que floresce com mais força no antigo lado oriental.

Após três décadas, e investimentos que superam € 1,5 trilhão (R$ 7,99 tri), inclusive para reativar linhas de trem que ligavam os dois lados de Berlim dividida e que ficaram 30 anos desativadas, ainda há disparidades no poder econômico e nos salários. O PIB per capita no território da antiga Alemanha Oriental em 2022 era de 79% do valor no Ocidente. Apenas 14,3% dos dos gestores nas principais autoridades federais são alemães orientais nativos.

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Na área da antiga Alemanha Ocidental também se vive mais tempo. A expectativa de vida é de dois a três anos mais baixa no Leste em relação ao Oeste, e a pandemia do coronavírus atingiu o Leste mais fortemente. Os dados estão no relatório anual de 172 páginas com os principais indicadores do processo de reunificação alemã, divulgado pelo governo alemão no dia 27 de setembro. Segundo especialistas, a diferença está no perfil mais industrializado e desenvolvido do Ocidente — das 10 maiores empresas alemãs, por exemplo, todas estão na região -— e na característica de uma economia formada por pequenas e médias empresas, uma maior área rural e população mais velha do Oriente.

— As diferenças entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental diminuem desde a queda do Muro, mas a Alemanha Oriental e a Alemanha Ocidental não se tornam iguais — conta ao GLOBO Ingo Gentes, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Freie Universität Berlin. — Na verdade, a reunificação não correu bem em muitas cidades da Alemanha Oriental. Na mente de muitos alemães orientais, o Muro ainda existe. Na própria Berlim existem novos muros econômicos e, de fato, expressos pela gentrificação nos bairros orientais, especialmente em Mitte e Prenzlauer Berg, onde a população original teve deixar suas casas devido à especulação desenfreada que resultou em preços de habitação altíssimos na última década.

De fato, segundo pesquisa realizada pela Infratest e publicada no jornal Berliner Zeitung, 43% dos entrevistados nos cinco estados do Leste que compunham a RDA concordavam com a afirmação: “Eu me sinto um cidadão de segunda classe”. Ao mesmo tempo, 40% ainda se identificavam como alemães orientais e não apenas alemães. Esse índice foi de apenas 18% entre alemães do Oeste que se consideravam alemães ocidentais.

— Há uma emigração muito forte do Leste para o Oeste, quase 4 milhões de pessoas entre 1991 e 2021. Em grande medida, pessoas entre 18 e 29 anos, ou seja, o setor que carregaria a força de trabalho no futuro — disse o professor Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio Kai Michael Kenkel. — Do lado material, as coisas melhoraram nas cidades, mas não no ambiente rural. Ainda há uma lacuna de € 12 mil por ano na renda média nos setores secundário e terciário. A população no Leste está mais velha e menos adaptada para o novo mercado de trabalho.

Prefeito extremista

A explosiva combinação de ressentimento, falta de identidade e perspectiva, três décadas após a queda do Muro, tem se tornado o combustível para o crescimento do partido político de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão), justamente no território comunista antes da reunificação.

A sigla, que apresenta ideias abertamente contra imigração, teses conspiratórias e críticas à União Europeia, elegeu em julho o primeiro prefeito, na pequena cidade de Raguhn-Jessnitz, na Saxônia-Anhalt — no antigo Leste. A ascensão da AfD já foi classificada como “caso suspeito” pelo serviço de inteligência doméstica do país.

— As narrativas de conspiração atingem partes da população e são particularmente populares no espectro político de direita, o que quase sempre está correlacionado com uma avaliação negativa da democracia. Precisamos estar totalmente atentos a esse movimento — diz Ingo Gentes.

O professor Kai Kenkel reforça essa visão:

— Não se pode ter a mínima paciência com fenômenos como a AfD, mas a solução é incitar a população a ver que essa postura é sem futuro, e não aumentar a exclusão com a proibição. Deve-se criar outras avenidas de representação dos pleitos dos alemães do leste e da sua vivência que não se associam à extrema-direita.

Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM, lembra que a AfD surgiu em 2013 durante o governo da chanceler Angela Merkel, antecessora do atual ocupante do cargo, Olaf Scholz. Merkel nasceu e cresceu na Alemanha Oriental.

— Será muito difícil alcançar a igualdade, ainda mais pela ascensão da AfD no território Oriental, no rastro do ressentimento. As diferenças existem, a produtividade econômica não é igual, o diferente aspecto cultural ainda está presente. O ressentimento está levando à votação na extrema-direita — assinala. — Durante toda a Guerra Fria, os alemães orientais tinham um espelho. Os outros países dentro da Cortina de Ferro, não. É como o México com os EUA, com a diferença de que na Alemanha era o mesmo povo e eles podiam se comparar.

Diante dos novos dados econômicos, Wolfgang Tiefensee, o ministro da Economia da Turíngia, área pertencente à antiga Alemanha Oriental, tem opinião semelhante. Ele já admite que a convergência econômica levará décadas.

— Definitivamente precisamos de mais 10 ou 20 anos até que as condições estejam realmente equalizadas para que possamos falar sobre condições de vida iguais — disse o político do SPD, mesmo partido do chanceler Olaf Scholz.

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