Em pouco menos de um mês, Somaya foi obrigada a abandonar, às pressas, a casa em Beit Hanoun, no norte da Faixa de Gaza, deslocar-se para o campo de refugiados de Jabaliya e, após poucos dias, percorrer mais de 20 quilômetros a pé até a cidade de Deir al-Balah, na região central do enclave palestino, onde se abriga hoje. Fugindo dos intensos bombardeios de Israel, em conflito com o Hamas desde 7 de outubro, ela é uma das 5,5 mil grávidas palestinas prestes a dar à luz até o fim do mês de novembro — de um total de mais de 50 mil gestantes no enclave, segundo a ONU — e que o farão em meio a uma grave escassez de ajuda humanitária e em um momento em que hospitais se tornaram alvo de ataques israelenses, com mais da metade deles sendo fechados nos últimos dias.
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Sem comida, sem água e sem eletricidade, ela divide um colchão e cobertores doados por vizinhos com o restante da família em uma barraca que mal fornece proteção contra o sol e a chuva, do lado de fora de um abrigo já lotado de outros deslocados internos. A maioria deixou suas casas após o ultimato de Israel, em outubro, obrigando cerca de 1,1 milhão de moradores das regiões a norte do Rio Wadi Gaza, que divide o enclave em duas metades, a deixarem a região.
— Meus filhos choram a noite toda com os bombardeios — conta Somaya à ONG ActionAid, relato ao qual o GLOBO teve acesso. — Não tenho roupas e pertences e minha casa foi provavelmente bombardeada. Não tenho roupas para o bebê que vai nascer. Não tenho nada. O que eu faço? O que é esse sofrimento todo?
A história de Somaya é parecida com a de Salma (nome fictício), também entrevistada pela organização. Residente de Beit Hanoun, Salma tem duas filhas e está grávida de um menino, que deve nascer dentro da próxima semana. Abrigada em uma escola no sul cuja localidade não foi informada, a preocupação com a higiene local é inevitável.
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— Não há nem "água salgada" — relata Salma. — Tenho medo do ambiente em que estou vivendo. Tenho medo de doenças porque não há água para nos limparmos.
Sem água e sem leite
Sabine, por sua vez, teve Abdullah uma semana antes do ataque do Hamas ao território israelense — que deixou mais de 1.200 mortos — mas, por causa da escalada do conflito, não conseguiu sequer registrar o filho. Eles fugiram de Khan Younis, cidade no sul de Gaza também alvo de bombardeios, e hoje se abrigam em uma escola. Uma das consequências da falta d'água e de comida é que Sabine não consegue amamentar o próprio filho, que depende de fórmula infantil para se alimentar. Mas a ajuda que chega até ela tem sido insuficiente.
— O corpo do meu filho está começando a ficar amarelo por causa da falta de amamentação. O que o meu filho fez de errado? — perguntou Sabine, contando que estava havia cinco dias sem comer pão. — O que meu filho fez de errado para nascer sob essas circunstâncias? Meu filho precisa de uma cama. Por que ele não pode ter fraldas e leite?
O cenário crítico das grávidas de Gaza, entretanto, não se reflete somente em um pós-parto precário. Como resultado do impacto da guerra nos serviços de saúde, relatórios da ONU indicaram que, dos 36 hospitais na Faixa de Gaza, 20 já foram forçados a encerrar os serviços. Isso se traduz em uma escassez de medicamentos e equipamentos, em infraestrutura comprometida, superlotações e na inexistência de atendimento pré-natal.
Adicionalmente, o estresse causado pelos bombardeios, a violência e os constantes deslocamentos podem levar a abortos espontâneos e problemas de saúde de curto e longo prazo para mães e bebês, alertou o Fundo da ONU para a Infãncia (Unicef) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) em uma declaração conjunta.
Recém-nascidos órfãos
No caso de uma complicação durante o parto — que, segundo a ONU, poderá ocorrer em cerca de 15% dos casos, exigindo cuidados médicos adicionais — como uma hemorragia, não há recursos para transfusão de sangue ou cirurgias de emergência, uma vez que a maior parte dos recursos acaba invariavelmente direcionada aos feridos pelos bombardeios e mísseis, conforme explicou ao GLOBO o presidente e diretor da ONG de assistência humanitária MedGlobal, Zaher Sahloul.
— Temos visto exemplos dolorosos de mulheres que passaram por cesarianas devido a complicações, ou que tiveram sangramentos após o parto e morreram em seguida — diz Sahloul. — Há mulheres e crianças que foram admitidas na sala de emergência após um bombardeio, e o feto estava morto no ventre da mãe devido a um sangramento uterino. Ou, ainda, bebês que nascem quando a mãe já está morta devido a ferimentos graves.
A situação se deteriorou ainda mais nos últimos dias, quando hospitais — sobretudo o al-Shifa (na Cidade de Gaza), sob cerco de Israel — tornaram-se alvo de ataques e centro das acusações entre israelenses e o Hamas sobre a desumanidade no conflito.
De um lado, Israel acusa o Hamas de usar civis como escudo humano e afirma que um centro de operações do grupo foi construído abaixo do hospital. Por sua vez, o Hamas acusa o governo do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, de usar a narrativa como pretexto para cometer crimes de guerra, atacando infraestruturas civis protegidas pelo direito internacional. Como consequência dos recentes bombardeios à unidade de al-Shifa, a principal da região, incubadoras pararam de funcionar com a falta de eletricidade, resultando na morte de seis bebês prematuros nos últimos dois dias.
— Com os hospitais fechados e inacessíveis, temos que contar com a ajuda de mulheres civis experientes que possam assistir as grávidas, ou apoiar paramédicos nos abrigos, por exemplo — disse ao GLOBO Soraida Hussein-Sabbah, especialista em defesa de gênero da ActionAid.
Cerca de 11 mil pessoas já morreram em Gaza desde o início do conflito, sendo 2,6 mil mulheres e mais de 4,1 mil crianças e adolescentes, segundo o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas. Isso significa que um menor é morto e dois são feridos a cada 10 minutos, segundo a agência da ONU para refugiados palestinos, em alerta divulgado na semana passada.