Chile rechaça nova Constituição em referendo

De acordo com dados oficiais, 55,76% dos chilenos votaram a favor da permanência da Carta Magna herdada da ditadura de Pinochet

Por O Globo, com agências internacionais — Santiago


Referendo sobre nova Constituição foi a 2ª tentativa em dois anos de derrubar texto herdado da ditadura Pinochet Pablo Vera/AFP

A Constituição herdada pelo Chile da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) vai permanecer em vigência no país após o referendo constituinte realizado neste domingo. Com 99% das urnas apuradas, 55,76% dos chilenos votaram contra a aprovação de uma nova Carta Magna, escrita por uma comissão majoritariamente conservadora, enquanto 44,24% votaram a favor do novo texto.

O projeto de nova Constituição colocado para a votação — o segundo a ser apresentado em dois anos — foi elaborado por um Conselho Constitucional dominado pela oposição ao governo do esquerdista Gabriel Boric. Dos 50 assentos no órgão, 33 ficaram — após eleições realizadas em maio passado —nas mãos de representantes de partidos de direita, incluindo 22 do Partido Republicano, do ultraconservador e ex-candidato presidencial José Antonio Kast.

O resultado representa, portanto, uma derrota para Kast, que perdeu a eleição presidencial de 2021 no segundo turno, vencida por Boric. O líder da extrema direita chilena ainda tem ambições presidenciais e transformou a consulta de ontem num teste eleitoral para Boric. O presidente não participou da campanha, mas o revés sofrido por Kast é, talvez, a melhor notícia que teve em 2023.

— Alguns dizem que as eleições não se ganham nem se perdem, que se interpretam. Nós republicamos somos diferentes: quando ganhamos, ganhamos. Quando perdemos, perdemos. E nesta noite, uma grande maioria de chilenos rejeitou a proposta constitucional que enviamos do Conselho Constitucional. Reconhecemos essa derrota muito claramente e com humildade — afirmou Kast em discurso na noite deste sábado. — Fracassamos no esforço de convencer os chilenos que esta é uma Constituição melhor que a vigente e o caminho mais seguro para acabar com a incerteza política, econômica e social.

O texto colocado para votação pretendia reduzir o peso do Estado, limitar alguns direitos — como o aborto em caso de risco para a saúde da mãe e do feto — e endurecer o tratamento a migrantes, com a expulsão "no menor tempo possível" daqueles que estão em situação irregular. Aborto e imigrantes estrangeiros são dois dois principais temas da agenda da direita chilena, que já pensa nas eleições regionais de 2024 e nas presidenciais de 2025.

Plebiscito: chilenos vão às urnas para votar proposta de nova Constituição

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Apesar do protagonismo da oposição e de críticas de setores governistas ao texto final, o Gabinete de Boric manteve uma postura neutra com relação à realização do referendo. Ao votar neste domingo, o presidente afirmou que a conclusão do processo mostrava a força da democracia chilena.

— Hoje, realizamos uma nova jornada cívica que, além de qualquer resultado, fortalece nossa democracia — disse Boric após votar em Punta Arenas, sua cidade natal, localizada a 3 mil quilômetros ao sul de Santiago. — Canalizamos institucionalmente os problemas que temos na sociedade e os resolvemos pacificamente.

Ainda de acordo com Boric, o resultado do referendo constitucional não altera a agenda do governo atual que, ele disse, continuará a se dedicar a temas como saúde, segurança e construção de moradias populares.

Pesquisas de intenção de voto divulgadas duas semanas antes da votação, as últimas publicadas por força de lei, anteciparam a vitória do voto contrário ao texto.

Anos turbulentos

O Chile iniciou há quatro anos um processo para tentar mudar a Constituição herdada da ditadura de Pinochet. Após os fortes e violentos protestos que eclodiram no país em outubro de 2019, o governo do então presidente Sebastián Piñera e a oposição chegaram a um acordo para realizar um plebiscito sobre o processo constituinte. Em novembro de 2020, 80% dos chilenos votaram para que fosse criada uma comissão para escrever uma nova Carta Magna.

Uma Assembleia Constituinte com ampla maioria de esquerda redigiu um texto progressista, que incluía transformações profundas, como a eliminação do Senado e o direito ao aborto, que acabou rejeitada por 62%.

O processo atual foi iniciado já no mandato de Boric, dessa vez com os eleitores escolhendo nomes mais conservadores para trabalharem na redação do novo texto constitucional. Observadores do processo indicaram que a maioria de direita pouco tentou buscar um consenso com a oposição, atropelando a minoria.

Apoiadores do 'Contra' comemoram rejeição do texto final da Carta Magna — Foto: Javier Torres/AFP

— Está se construindo uma ‘Kastituição’, não uma Constituição. Estão fazendo uma Constituição para Kast, para o setor republicano — criticou a presidente do Partido Socialista, Paulina Vodanovic, em 24 de setembro.

Boric também criticou o que considerou uma imposição da maioria.

— Aqui não houve proposta nem perto de consenso; no final, prevaleceu a maioria circunstancial que existia no Conselho, como [aconteceu] no processo anterior — disse o presidente em 31 de outubro.

Líderes ultraconservadores e da centro-direita chilena, contudo, mostraram-se satisfeitos com o resultado obtido durante o processo e demonstraram apoio à proposta final.

— A proposta do Conselho Constitucional não só é infinitamente melhor do que a proposta da Convenção fracassada [votada no ano passado], mas também melhor do que a atual Constituição — declarou Piñera, ex-presidente que articulou com a oposição o primeiro processo constituinte, em 2020.

Desinteresse

Nem a polarização sobre o texto final ou o desejo de pôr um fim à legislação da ditadura formam suficientes para mobilizar a população, aparentemente esgotada pelos anos de disputa. Autoridades chilenas registraram cerca de 350 mil pedidos de ausência justificada.

De acordo com Michael Shifter, ex-presidente da instituição Inter-American Dialogue e professor da Universidade de Georgetown, o país mudou em comparação ao período que o processo começou, com outras urgências ocupando a sociedade.

— É outro Chile. O país mudou drasticamente (...) e, de certa forma, tornou-se um país mais latino-americano. Os chilenos sempre se consideraram uma exceção, um país mais europeu, e não como os seus vizinhos, e agora parecem um pouco mais parecido com eles — analisou. (Com La Tercera e AFP).

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