Senado aprova marco temporal para demarcação de terras indígenas em ofensiva contra o STF

Com pressão da bancada ruralista, texto aceita a tese jurídica do marco de 1988; texto vai à sanção de Lula

Por — Brasil


Indígenas acompanham votação no STF sobre o marco temporal Brenno Carvalho/Agência O Globo

Após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir contrariamente à tese do marco temporal da demarcação das terras indígenas, o Senado aprovou o projeto de lei que vai em sentido oposto ao que foi decidido pela Corte. Foram 43 votos favoráveis e 21 contrários. O texto segue agora para análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancioná-lo ou exercer o veto.

Mais cedo, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) havia endossado, por 16 votos a favor e 10 contra, o relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO) que define o ano de 1988, quando a Constituição foi promulgada, como marco para demarcação de terras indígenas.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), negou que a aprovação da medida pelo Congresso fosse uma afronta ao STF. Segundo ele, o Parlamento não pode se omitir daquilo que é seu dever de legislar.

—Não é revanchismo, mas não podemos nos omitir do nosso dever, que é legislar— afirmou Pacheco ao final da votação.

Antes da votação, ele havia dito que é natural o Congresso Nacional possa decidir a esse respeito.

—Isso pode, inclusive, subsidiar o Supremo Tribunal Federal em relação ao entendimento quanto a esse tema. Não há nenhum tipo de adversidade ou de enfrentamento com o Supremo. É apenas uma posição do Congresso, considerando que nós reputamos que temas dessa natureza devem ser deliberados no Congresso Nacional—afirmou Pacheco.

O projeto diz que são consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que em 5 de outubro de 1988 eram:

  • Habitadas por indígenas habitadas em caráter permanente;
  • utilizadas para suas atividades produtivas;
  • imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
  • necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

O presidente da bancada ruralista, Pedro Lupion (PP-PR), afirmou que o Congresso está deixando claro seu papel de legislar.

—O que o STF fez foi uma interpretação constitucional. Tenho entendimento claro que o artigo 231 da constituição fala sobre marco temporal, eles disseram que não. Se eles quiserem contestar essa lei, alguém vai ter que pedir, não podem ser iniciativa deles, aluguém vai ter que entrar no stf, imagino que alguém da oposição o fará, e fazer com que haja esse julgamento. Até isso acontecer, pode acontecer muita coisa— disse Lupion.

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Sem partido-AP), criticou a aprovação do projeto e afirmou que Lula irá vetar a medida.

—O Supremo Tribunal julgou um caso sobre isso. Correndo atrás, o Legislativo tentou alterar o julgamento em tela através de uma lei infraconstitucional, abaixo da Constituição. Por óbvio, essa matéria será levada ao veto do Presidente da República. Por óbvio, mesmo que o veto ou os vetos venham a ser derrubados, por óbvio, será mais uma vez acionada a Suprema Corte, porque ela existe para isso, para ser acionada quando esse documento é ofendido, quando esse documento é descumprido—disse Randolfe.

Rogério rejeitou todas as emendas apresentadas ao texto, principalmente, para possibilitar a rápida aprovação do projeto, sem a necessidade do seu retorno à Câmara.

Indígenas comemoram votação do marco temporal no STF

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Ministros formam maioria para derrubar marco temporal das terras indígenas, a tese que limitaria demarcações de terras indígenas

—Se nós fizermos qualquer modificação substancial aqui que vá além daquelas emendas de redação, essa matéria volta à Câmara dos Deputados, e aí é uma escolha política. E nós estamos diante de um ambiente de insegurança, de inquietação, de intranquilidade no Brasil inteiro—disse Rogério.

O governo orientou contra a votação do projeto.

--Como já está escrito no texto Constitucional, como já estava escrito no texto em 1934 com o mesmo sentido, eu entendo que é inócuo votar um PL, categoria inferior à nossa Constituição, para reafirmar aquilo que já está escrito, como bem disse o Senador Renan, na Constituição-- afirmou o líder do governo no Senado, senador Jaques Wagner (PT-BA)

—Este projeto que trata do marco temporal trata e assegura um problema muito sério, e para mim, na verdade, é um projeto que acaba sendo feito para aqueles que estão em situação de invasão hoje no Brasil, que são os posseiros— afirmou a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), contrária ao projeto.

Além de definir o marco, o relatório de Rogério também permite a instalação de bases, unidades e postos militares nos territórios independentemente de consulta às comunidades.

Parlamentares da base governista acreditam que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deva vetar pontos do projeto após a conclusão da tramitação no Congresso. Até mesmo o relator do texto também espera essas mudanças.

--Existem pontos específicos, como a questão dos transgênicos, por exemplo, a questão das comunidades isoladas. Tem alguns pontos em que há essa divergência, mas estão separados. Então, é possível que, na sequência do processo legislativo, por uma escolha política, se opere o veto nesses pontos sem prejuízo ao núcleo central— disse Marcos Rogério.

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O texto também traz uma permissão para plantar transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas. No caso de indígenas isolados, o projeto permite o contato, intermediado pela Funai, para ações estatais como auxílio médico ou ação estatal de utilidade pública, como construção de equipamentos de serviços públicos.

Volta ao Supremo

Uma eventual "derrubada" do projeto de lei pela Corte só poderia ocorrer após ele ser aprovado e tornado lei. A interpretação é de que não cabe "controle antecipado" de constitucionalidade. Também seria necessário que algum partido acionasse o Supremo por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade.

Agora, com a aprovação do Congresso em uma direção e o entendimento do STF em outra, o professor Titular da Faculdade de Direito da UERJ Gustavo Binenbojm afirma que uma ação direta de inconstitucionalidade será provavelmente ajuizada contra a nova lei. Também é provável que o STF entenda que ela é inconstitucional, segundo ele.

—O Congresso não está impedido de legislar e o Supremo tem jurisprudência firme no sentido de que não cabe controle prévio, antes de o Projeto de Lei ser promulgado—diz Binenbojm.

Em preparação a uma reação como essa, a bancada ruralista já se antecipou e tem coletado assinaturas para uma PEC que tenta barrar ações do Supremo, no que considera como “ativismo judicial” e outra também sobre o marco temporal.

—Mas é possível que alguns Ministros entendam que os direitos fundamentais dos povos indígenas constituem cláusulas pétreas implícitas, que decorrem do próprio sistema constitucional, e queiram derrubar a própria Emenda Constitucional. Se haverá maioria para isso, por enquanto, ninguém sabe —afirma

Já para a professora de direito da FGV Flávia Bahia, as manifestações divergentes de Judiciário e legislativo são próprias do sistema de separação em três Poderes.

—O Supremo pode dizer uma coisa em um dia e o Senado e a Câmara decidirem de forma diferente posteriormente. Está em perfeita consonância com o princípio republicano, com o princípio democrático e com a separação e harmonia entre os poderes— disse Bahia.

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O projeto opõe ambientalistas e ruralistas, que têm forte aderência nos partidos do Centrão. Opositores do projeto avaliam que usar o ano como marco seria retroceder em relação às terras conquistadas. Defensores do projeto, por sua vez, dizem que o texto dá "segurança jurídica".

O deputado Pedro Lupion (PP-PR), coordenador da bancada ruralista do Congresso, anunciou na semana passada que o grupo iria agir para obstruir todas as votações da Câmara e do Senado enquanto o marco temporal não for aprovado.

Lupion disse que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), "tem cumprido o compromisso" com a bancada ruralista e deixado o texto tramitar nas comissões, mas fez uma ressalva de que não sabia como o Senado irá se comportar em relação ao tema a partir da próxima semana.

Além do projeto de lei sobre o marco temporal, a bancada ruralista tenta ainda avançar com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e com um outro projeto com a previsão de indenização aos proprietários de terras demarcadas.

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Julgamento na Corte

Após onze sessões de julgamento, o STF derrubou, por nove votos a dois, a validade do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Com o voto final da presidente da Corte, ministra Rosa Weber, nove ministros se manifestaram contra a tese — Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.

Do outro lado, foram favoráveis ao marco temporal os ministros Nunes Marques e André Mendonça. A proclamação do resultado causou grande comemoração do lado de fora do Supremo, onde indígenas de diferentes etnias acompanharam o julgamento.

Há divergências quanto às reparações e indenizações devidas a quem ocupa terras consideradas indígenas, questão que ainda será definida com a fixação de uma tese nessa quarta-feira, dia da última sessão presidida por Rosa Weber.

Tramitação no Congresso

Em junho, a Câmara dos Deputados aprovou a urgência do projeto de lei que estabelece o marco temporal para demarcação de terras indígenas. O assunto voltou a ser debatido a partir de requerimentos apresentados por partidos da oposição e o resultado da votação foi comemorado pela bancada ruralista. A deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) foi ao microfone e chamou os parlamentares da bancada ruralistas de "assassinos do povo indígena". Em resposta, foi chamada de "imbecil" por vários membros da bancada do agro. Na sequência, parlamentares aprovaram o projeto em plenário.

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A votação da urgência para o marco temporal gerou uma crise entre integrantes da esquerda, já que o governo liberou a sua bancada para votar como quisesse. Partidos de centro, que possuem cargos no primeiro escalão, foram favoráveis ao marco temporal. A justificativa oficial dos governistas foi de que a liberação ocorreu porque as legendas de centro já seriam favoráveis ao marco temporal, de qualquer maneira.

Nos bastidores, políticos do PSOL diziam que a liberação ocorreu por um acordo firmado no alinhamento de forças pelo Arcabouço Fiscal, aprovado na véspera: o governo conseguiu os apoios necessários no que dizia respeito ao Arcabouço e deixou, como moeda de troca, que os demais partidos votassem como quisessem na questão que envolve a demarcação de terras.

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