A atividade de inteligência, em qualquer canto do mundo, tem como ofício primário a discrição. Sob anonimato, agentes do serviço secreto se infiltram em eventos, acompanham os passos de suspeitos e, silenciosamente, levantam informações estratégicas para assessorar o presidente da República. No Brasil, porém, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vive uma situação oposta. Enredada em seu maior escândalo de espionagem, o órgão está em evidência desde que entrou na mira de uma investigação da Polícia Federal, que apura se houve um esquema de monitoramento ilegal durante o governo de Jair Bolsonaro. O caso, revelado pelo GLOBO em março do ano passado, reabriu a discussão sobre o papel e os limites da atuação da agência.
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O uso do programa espião FirstMile, que monitorava a localização de celulares em todo o país explorando uma brecha no sistema de telefonia, levou a PF a instaurar o inquérito que descobriu que a teia era muito mais ampla — e pode ter monitorado parlamentares, advogados, ministros do Supremo Tribunal Federal, representantes de embaixadas, jornalistas, entre outros. Dentre eles, está o ex-deputado federal Jean Wyllys, adversário declarado do ex-presidente e de seu filho Carlos Bolsonaro, que foi alvo de uma operação na semana passada por suspeita de integrar o “núcleo político” do suposto esquema. Ambos negam qualquer irregularidade e dizem que a investigação é fruto de “perseguição”.
Vácuos legislativos
A Abin, que não possui autorização legal para acessar dados privados, reconhece o uso do sistema espião no governo Bolsonaro, diz que está colaborando com a investigação e alega que o contrato firmado com a fabricante israelense da ferramenta seguiu todos os trâmites devidos.
Para Rafael Zanatta, diretor do DataPrivacy Brasil, o uso da ferramenta indica que o limite da “personalização” das atividades republicanas foi extrapolado. A investigação da PF aponta, por exemplo, que a Abin monitorou um jantar entre os ex-deputados Rodrigo Maia, na época presidente da Câmara, e Joice Hasselmann com um advogado e Antonio Rueda, então dirigente do PSL. O encontro ocorreu durante o racha interno no partido que culminou na saída de Bolsonaro da sigla.
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— Não eram ameaças republicanas, que dizem respeito à salvaguarda ou segurança da sociedade e do Estado, como diz a lei. Outro problema é que o uso do FirstMile é ilícito, pois pressupõe uma atividade ilegal de exploração do sistema de telefonia, e obter informações que colocam pessoas em posição de vulnerabilidade — afirma Zanatta.
Diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão afirma que existe uma brecha dentro da lei permitindo a interpretação de que é possível comprar ferramentas de investigação sem licitação e sob sigilo:
— Deveria haver um marco legal da atividade de inteligência e das ferramentas utilizadas. Essa investigação é só a ponta do iceberg. Já se sabe que existem ferramentas de inteligência invasivas e ilegais na posse de autoridades no Brasil inteiro. Isso põe em risco os direitos do cidadão e precisa ser sanado.
Para os especialistas ouvidos pelo GLOBO, a nova crise na Abin também pode servir para possíveis mudanças na estrutura do sistema de inteligência no país. Em especial, no que diz respeito ao controle de suas atividades.
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No ano passado, o governo já retirou a agência do Gabinete de Segurança Institucional e criou novos departamentos. Ao ser sabatinado no Senado, o diretor-geral da agência, Luiz Fernando Corrêa, destacou a necessidade de maior controle externo do órgão. Ao falar sobre o assunto ao GLOBO, em outubro do ano passado, Corrêa defendeu a criação no Judiciário de uma vara especializada em inteligência. O novo diretor-adjunto da Abin, Marco Cepik, também defendeu a mudança no sistema, com uma vara na Justiça para autorizar escutas telefônicas.
Para o professor Alexandre Walmutt Borges, a Abin sofre com um problema parecido com o que ocorreu com a Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura militar e revogada só em 2021. A legislação serviu como base para abusos cometidos durante o regime autoritário (1964 a 1985).
— O Brasil só foi fazer essa discussão há três anos, e muitos dos envolvidos no 8 de janeiro hoje respondem pelos artigos que foram incluídos na lei — afirma Borges.
O controle das atividades de inteligência cabe à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), que reúne deputados e senadores. O colegiado, contudo, se reuniu apenas sete vezes no ano passado e não fiscalizou com a devida atenção as suspeitas relacionadas ao uso do programa espião. De 11 requerimentos aprovados sobre o tema, apenas dois diziam respeito ao First Mile. Procurado, o presidente da CCAI não se manifestou.
Um projeto que tramita desde 2011 propõe a criação de uma Controladoria das Atividades de Inteligência no país, que funcionaria como uma instância técnica da CCAI para fiscalizar a atividade da Abin e apurar denúncias sobre violações. O texto aguarda a designação de um relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
Experiência internacional
A Abin nasceu em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso. A estruturação do órgão foi fruto do processo de redemocratização, que extinguiu o Serviço Nacional de Informações (SNI), utilizado para bisbilhotar e fabricar dossiês de adversários do regime militar. A lei que criou a agência prevê como principal missão de agentes e oficiais de inteligência preservar a soberania nacional, defender o Estado Democrático de Direito e “fornecer subsídios ao presidente da República nos assuntos de interesse nacional”.
Ao longo do tempo, porém, agentes se envolveram em casos rumorosos de arapongagem — um deles na Operação Satiagraha, que monitorou, de forma ilegal, um banqueiro visto como adversário político do governo petista.
A atividade de inteligência de alguns países se destaca por uma estrutura mais organizada que a brasileira, com competências segmentadas. Na Inglaterra, há uma vertente voltada para a atuação internacional, e outra com foco interno. Israel tem três agências com atuações distintas. Nos Estados Unidos, há 18 organizações, incluindo duas agências independentes — a CIA é uma delas. Para a cientista política Priscila Brandão, professora da UFMG, a atividade de inteligência é mais eficaz quando composta por diferentes estruturas:
— Um órgão que tenta atuar em tudo não funciona. O modelo do Brasil é o da antiga KGB (polícia secreta da União Soviética), que se empenhava na análise de todas as áreas ao mesmo tempo. A Abin não pegou o modelo americano ou inglês. Colocou em uma mesma agência todas as competências.