Quando a História vira um vazio: Zona Sul do Rio enfrenta furtos em série de monumentos; veja os que já foram vandalizados

Numa única via de Botafogo, cinco de oito bustos sofreram vandalismo

Por — Rio de Janeiro


O monumento a Deodoro da Fonseca, na Praça Paris, teve a imagem de bronze da mãe do marechal furtada em 2020, mesmo pesando 400 quilos HERMES DE PAULA

Além de embelezar e conferir riqueza cultural, eles contam a História do Rio — ou pelo menos deveriam. A cidade tem cerca de 2.400 monumentos, e boa parte deles fica na Zona Sul, mas aos poucos — ou não — eles estão desaparecendo. Em dois meses, pelo menos três destes patrimônios públicos foram furtados só em Botafogo. Há pouco mais de uma semana, o alvo foi o busto de bronze de Juruena de Matos, que ficava na Praia de Botafogo 428. Antes mesmo do novo furto, a obra do escultor J. Moreira Jr., inaugurada em 1967, já não tinha a placa que trazia a identificação de Matos, que em 1927 fundou o Instituto Juruena, foi diretor da Escola Amaro Cavalcanti e dedicou a sua vida ao magistério.

Há cerca de duas semanas, o busto do túmulo do escritor Nelson Rodrigues, que fica no Cemitério São João Batista, também foi furtado. Ainda no cemitério, há aproximadamente dois meses, a estátua de bronze de 1,60 m que ornava o mausoléu do escritor e médico Cláudio de Sousa, que foi presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), também foi levada. Estes dois últimos furtos foram denunciados por Marconi Andrade, fundador da ONG SOS Patrimônio.

Reformada em 2022, a Murada da Glória já foi vandalizada — Foto: Hermes de Paula

— Uma estátua de bronze de 1,60m não pesa menos de 200 quilos. Desapareceu, e ficou por isso mesmo. Assim como a porta do túmulo do Marquês de Paraná, a qual pesava cerca de 400 quilos. São patrimônios históricos que estão sendo levados, e ninguém faz nada. O problema é comum, no São João Batista e fora dele também. Botafogo virou terra de ninguém — alerta o restaurador.

Só na Praia de Botafogo são 12 monumentos, sendo oito representando personalidades. Destes oito, cinco foram vandalizados. Além da obra em homenagem a Juruena de Matos, estão na lista de depredados os monumentos a Bartolomeu Mitre, Pablo Neruda, Carvalho de Brito, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas.

Morador da região, o taxista Marcelo David mapeou muitos desses monumentos vandalizados e enviou a listagem para a prefeitura.

— Nasci e sempre vivi em Botafogo e conheço bem cada monumento aqui. Não conheço a história de todos, até porque hoje está cada vez mais difícil saber, uma vez que a maioria não tem mais placa. Mas eu sei onde fica cada um, e toda vez que vejo que algum foi furtado, aviso a prefeitura. Recentemente, com a ajuda de outros moradores que me enviaram fotos, mapeei vários locais. Fico muito triste porque é a História indo embora — diz.

O monumento a Juruena de Matos sem a placa de identificação: depois, o busto do também foi furtado — Foto: Divulgação

Andrade, porém, lembra que o problema não é exclusivo de Botafogo. O restaurador, que mora na Glória, ressalta que no bairro os casos de vandalismo também ocorrem quase diariamente.

A Murada da Glória, inaugurada em 1905, foi revitalizada pela prefeitura em 2022 e já perdeu poste e luminárias, além de ter pichações. A cena de degradação se repete na Praça Paris: o monumento a Deodoro da Fonseca teve a imagem de bronze da mãe do marechal furtada em 2020. Mesmo pesando 400 quilos, nunca foi encontrada. Ainda na Praça Paris, o busto de Cândido Mendes está sem placa.

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Zumbi dos Palmares, Mercedes Baptista e Machado de Assis são alguns deles

Em frente ao antigo Hotel Glória, o busto de Eduardo Tapajós desapareceu. Na mesma altura, um dos dois brasões do monumento em homenagem ao centenário da abertura dos portos às nações amigas, com cerca de 200 quilos, também sumiu.

Prefeitura testa materiais menos visados por vândalos

Um levantamento de campo realizado pelo SOS Patrimônio concluiu que 90% dos monumentos e chafarizes da cidade estão sem parte de seus elementos.

— A pesquisa durou quase dois anos. Anotamos todos os itens, e posso garantir que a maioria não está em bom estado. Mesmo no caso dos que já foram restaurados, a recuperação não foi completa — afirma o restaurador Marconi Andrade.

Após vários furtos, estátua de Drummond hoje é monitorada por câmera — Foto: Márcio Alves / Agência O Globo

Carlos Drummond de Andrade

Na orla de Copacabana, os óculos do poeta Carlos Drummond de Andrade precisaram ser repostos 14 vezes desde a inauguração do monumento, em 2002. A estátua foi pichada quatro vezes nesse período. E, para tentar inibir a ação de vândalos, uma câmera foi instalada no local, com monitoramento 24 horas por dia, feito a partir do Centro de Operações Rio (COR), da prefeitura.

Além de Drummond, outros 15 monumentos são vigiados por câmeras, como o da Princesa Isabel, também em Copacabana, que teve a pichação flagrada por equipamentos, em maio do ano passado.

Substituição do bronze por resina

Em mais uma ação para combater a depredação, a Secretaria municipal de Conservação (Seconserva) está com um projeto-piloto de substituir o bronze dos monumentos por resina. O molde é feito em 3D, a partir de fotos do original.

Para Andrade, apesar de aparentemente cumprir um bom papel, a resina pode não ser uma boa escolha a longo prazo.

— Com o clima que faz no Rio, as estátuas não devem durar muito tempo. A borra de ferro também não tem valor comercial e é um material resistente — sugere. — As placas de aço inox que estão utilizando estão horríveis. Entendo que é para não ficar sem identificação, mas é uma descaracterização de monumentos que são obras de arte. A situação em que eles estão é realmente de chorar. São muitas perdas, para a cultura, para a História. É o empobrecimento da cidade.

Em contrapartida, Vera Dias, gerente de Monumentos e Chafarizes da Seconserva, alega que o ferro, além de ser alvo de furtos, é um material que sofre com a corrosão e não é fundido no Rio.

— A escultura em homenagem a Zuzu Angel, instalada em São Conrado, é feita de resina e está no local há 20 anos, sem problemas que comprometam a sua durabilidade e a qualidade da obra. O bronze é eterno, mas é muito visado pelos vândalos. Os monumentos sofrem com isso e, com o furto das placas, vão perdendo a referência de sua identidade. Desde o ano passado, estamos experimentando várias técnicas e novos materiais sem valor comercial ao fazer a reposição de placas, além de avaliar a durabilidade delas — detalha.

Para Andrade são quatro motivos principais que explicam a degradação do patrimônio:

— A impunidade e a falta de uma política de controle de ferros-velhos (local para onde as peças furtadas costumam ser vendidas), assim como problemas com a população em situação de rua e o desapego pelo patrimônio.

Educação patrimonial

O pesquisador e historiador Rafael Mattoso defende o desenvolvimento de projetos de educação patrimonial e uma atuação ostensiva da Guarda Municipal e da polícia e dos órgãos de proteção ao patrimônio.

— Quanto mais conhecemos, nos identificamos e participamos do processo, maior o nosso sentimento de preservação e proteção. É fundamental que tenhamos na educação básica a História da nossa cidade e que participemos da escolha dos monumentos e patrimônios — afirma.

A equipe da Gerência de Monumentos e Chafarizes informa que faz rondas por toda a cidade a fim de verificar o estado geral dos que estão sob a sua responsabilidade (1.238 monumentos e 139 chafarizes). Ao identificar algum furto, a Seconserva afirma que age em conjunto com a Guarda Municipal para registrar a ocorrência junto à Polícia Civil.

Além disso, a Guarda Municipal garante que atua na proteção de bens e instalações, por meio do patrulhamento preventivo das equipes nas ruas e também com apoio de câmeras de monitoramento.

De acordo com a Seconserva, o contrato de manutenção de monumentos e chafarizes é de cerca de R$ 2 milhões/ano e, além da remoção de pichações, contempla pequenos reparos, pintura, limpeza e reposição de pequenas peças, entre outros serviços. O custo de reposição de peças furtadas/danificadas varia caso a caso e é determinado após análise da Gerência de Monumentos e Chafarizes. Quando se trata de monumentos com grandes avarias ou totalmente depredados, que exigem restauro completo, é feito um orçamento separado.

Ainda segundo a Seconserva, em 2023, a Gerência de Monumentos e Chafarizes restaurou na Zona Sul o conjunto escultórico da Praça Del Prete, em Laranjeiras; a estátua de Zózimo Barrozo do Amaral, no Leblon; a escultura de São Pedro do Mar, na Urca; e a estátua de São Francisco de Assis, em Copacabana. A placa da Ponte Paulo Casé também foi recolocada.

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