Após um ano de tragédia que deixou 241 mortos, Petrópolis tem cem pontos de risco sem obras

Ministério Público aponta que locais afetados pelas chuvas de fevereiro e março de 2022 não tiveram intervenções assumidas nem pela prefeitura do município, nem pelo Governo do Estado

Por Giulia Ventura — Rio de Janeiro


As chuvas de fevereiro do ano passado provocaram vários deslizamentos e deixaram 244 mortos Márcia Foletto

Um ano após a tragédia que deixou 241 mortos em Petrópolis, na Região Serrana do Rio, pelo menos cem pontos afetados pelas chuvas ainda não passaram por obras, como aponta o Ministério Público. A Promotoria, que cita essas áreas em 26 ações civis públicas, afirma que nem a prefeitura da cidade serrana nem o estado assumiram a responsabilidade por fazer essas intervenções em trechos de grande risco para a população. O mapeamento foi feito com base em laudos do Departamento de Recursos Minerais (DRM), do governo estadual.

— Esse levantamento definiu as áreas de riscos remanescentes e indica as condições em que essas regiões se encontram. Ou seja, pela vistoria, ainda há possibilidade de novos deslizamentos, e não precisa de uma condição de intensa pluviosidade — explica o professor de engenharia geotécnica da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marcos Barreto.

Com as chuvas intensas dos últimos dias, o risco de novos desmoronamentos e enchentes ronda os sobreviventes da tragédia. Ontem, um temporal acionou as sirenes em áreas de risco na cidade, dois rios transbordaram e a prefeitura abriu pontos de apoio para receber moradores.

Áreas de risco remanescentes no 1º distrito de Petrópolis — Foto: Arte

— Até o momento, o que vemos é que fomos esquecidos pelo poder público. Muito pouco foi feito até agora. Petrópolis está abandonada — diz Cristiane Gross, que morava com a família no Morro da Oficina na época da tragédia e perdeu nove parentes soterrados. — A impressão que dá é que morreu, acabou. E nós tínhamos vida naqueles locais. Choro todos os dias. Meu maior sentimento é a saudade, mas o segundo é a revolta.

Promotora da 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Petrópolis, Zilda Januzzi Beck afirma que a prefeitura fez intervenções para que a cidade retomasse seu funcionamento. Já o estado, diz a promotora, ainda faz licitações de alguns projetos.

— A prefeitura fez algumas obras para o restabelecimento das funções essenciais da cidade, enquanto o Estado do Rio iniciou cinco obras de grande porte, algumas já concluídas. Entretanto, a grande maioria das áreas afetadas pelo desastre não teve qualquer intervenção, como no Morro da Oficina, onde houve o maior número de mortos — disse a promotora. — Sem a reconstrução dessas áreas, com medidas mitigadoras de risco estruturais, não só não se fecha a gestão do desastre, mas principalmente não se encerra o ciclo de sofrimento dos sobreviventes.

Deslizamentos no bairro Chácara Flora: nenhuma obra de contenção foi feita até agora — Foto: Márcia Foletto

O estado afirmou, por nota, que “todas as ações assumidas pelo governo para a recuperação da infraestrutura de Petrópolis estão em andamento” e que não há obras paradas. Acrescentou que já foram investidos mais de R$ 255 milhões em contenção de encostas, reconstrução de ruas e no reforço estrutural do túnel extravasor. Outros R$ 147 milhões serão destinados a obras que ainda aguardam licitação. O Palácio Guanabara divulgou ainda que, “desde a tragédia de 2011 — quando morreram 918 pessoas na Região Serrana —, o investimento em Petrópolis foi de R$ 700 milhões”.

Já a prefeitura de Petrópolis afirma que 48 das 129 obras assumidas pelo município foram concluídas no ano passado. Dentre elas, estão serviços de contenção de margens de rios (23) e recuperação de redes de drenagem (seis). Outras 41 estão em andamento, e 40 aguardam licitação. Sobre os cem pontos à espera de obras, a prefeitura informou que busca um convênio com o estado para a realização dos projetos.

Adalto com a filha Joyce na área em que moravam no Morro da Oficina — Foto: Marcia Foletto

Enquanto autoridades discutem a recuperação da cidade, quem enfrentou a tragédia de um ano atrás tenta se recuperar. Mas não tem sido fácil para Adalto da Silva, de 51 anos, que até hoje procura o filho Lucas Rufino, de 20, que desapareceu na avalanche no Morro da Oficina, um dos mais atingidos em Petrópolis.

— Vi tudo. Coloquei minha esposa e minha filhinha lá embaixo, achei que era seguro. Voltei falando que a terra tinha levado o Lucas, mas eu não sabia que elas tinham sido atingidas também — relembra.

Mulher e filha mortas

A mulher e a filha mais nova de Adalto, de 6 anos, foram encontradas sem vida. A família diz que o corpo de Lucas também foi localizado e identificado, mas depois desapareceu.

— É uma dor que sei que vou carregar para o resto da vida. Tudo tem começo, meio e fim. Para mim, não tem fim. É um ciclo que não se fecha. Além disso, conforme se aproximava a data da tragédia, passei a não conseguir dormir. Só consigo pensar em onde está o meu filho. Meu filho não tem nem certidão de óbito, não posso nem sequer visitá-lo no cemitério, como fiz com minha esposa e minha filha no Dia dos Finados — conta Adalto.

Parente de jovem que segue desaparecido fala da tragédia de Petrópolis após um ano

Além de Lucas, Heitor Carlos dos Santos, de 61 anos, não foi encontrado até hoje. Ele estava em um dos ônibus arrastados pela correnteza na Rua Washington Luís, no centro da cidade. A mãe dele, Dona Alcidea, de 82 anos, disse que nunca teve notícias do filho e que “tenta lidar” com a perda:

— Qualquer mãe sente. Como eu poderia estar? Isso dói.

Sobre o sumiço de Lucas, a 105ª DP (Petrópolis) informou que o corpo reclamado pela família do jovem passou por exame necropapiloscópico, que comprovou se tratar de outra vítima. O exame de DNA também não mostrou compatibilidade entre os parentes e o corpo analisado.

Insegurança

Camila Lyrio, de 38 anos, deixou 35 anos de história no Morro do Alto da Serra em busca de um lugar mais seguro para sua família:

— A gente sempre espera pelo pior, por estar tudo tão debilitado. Estamos sempre achando que o que ficou, a qualquer momento, vai acabar despencando. Além de mim, conheço pelo menos oito famílias que também saíram da cidade. As pessoas buscaram a Região dos Lagos, Baixada Fluminense ou foram para locais como Juiz de Fora.

Apenas no Morro da Oficina, 80 casas foram atingidas por um deslizamento, que matou 96 pessoas. Os destroços que marcam a tragédia seguem intocados na região desde o fim das buscas:

— Onde caíram os barrancos nada foi limpo, e, quando chove, desce uma água barrenta. O bueiro ali não teve limpeza também, então as pessoas ficam ilhadas com qualquer chuva. A lama desce até a rua dos Ferroviários (na Chácara Flora) — conta. — Vemos medidas no sentido de ‘como as pessoas devem agir em casos de enchente’, e não ações para prevenir a enchente de acontecer. Quem vai querer viver assim?

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