A médica Bianca Pires Cotta vivia um dos melhores momentos de sua vida no começo de 2009. Havia se formado em dezembro do ano anterior e no mês seguinte passou num concurso para residência em Dermatologia. No fim de maio se casou com Carlos Eduardo. No dia seguinte à cerimônia — na qual o noivo registrou em vídeo uma cena em que dizia estar tenso, porém feliz —, o casal embarcou para viagem de lua de mel no voo 447, da Air France, que deixou o Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio, mas nunca chegou ao seu destino, o Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Cerca de quatro horas depois, a aeronave caiu no mar, a 820km do arquipélago de Fernando de Noronha, com 228 pessoas: 126 homens, 82 mulheres, sete crianças e um bebê, além de 12 tripulantes. Ninguém sobreviveu.
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A tragédia completa 15 anos nesta sexta-feira, 31, e é recontada na série original Globoplay "Rio-Paris - A tragédia do voo 447", cujos quatro episódios serão disponibilizados de uma única vez na plataforma, na mesma data. A produção, a cargo do jornalismo da Globo, reconstitui ponto a ponto o acidente, aborda também as causas, as investigações e o que mudou na aviação depois do desastre.
As imagens são costuradas por relatos dos familiares das vítimas que aceitaram falar e contar como conseguiram superar as perdas e conviver com o luto. No primeiro episódio e engenheiro e professor titular da UFRJ, Renato Machado Cotta, pai de Bianca e sogro de Carlos Eduardo, mortos no acidente, conta que durante os quatro meses que se seguiram não conseguia trabalhar.
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—Após o acidente passei do céu ao inferno. Na época perdi minha filha Bianca e meu genro Carlos Eduardo. Eles haviam se casado na noite anterior e estavam indo para a lua de mel — relatou Renato, que a partir da tragédia se dedicou a investigar a tragédia.
Renata Mondelo, viúva de Marco Antônio, outra vítima, disse que o marido, nascido no interior de Minas Gerais, também vivia um bom momento profissional, como diretor de comercialização de uma multinacional. Na vida pessoal tudo ia igualmente bem.
O casal tinha acabado de ter o filho Thiago, que ficou órfão menos de um mês antes de completar um ano. Hoje, adolescente, diz que na infância imaginava que o pai tinha conseguido nadar até uma ilha e achava que a volta dele para casa era só uma questão de tempo. A viúva considera que a morte do marido foi obra do destino:
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—Infelizmente existe uma coisa chamada destino, que a gente não consegue mexer nisso. Ele não ia pegar esse voo. Ia pegar outro voo mais tarde. Um colega deu a ideia dele trocar de voo — afirmou Renata.
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Costurar a narrativa com os relatos dos familiares da vítimas foi a opção dos realizadores para humanizar a história. Ao todo, foram entrevistados integrantes de 11 famílias, duas na França e nove no Brasil. Outras foram procuradas, mas se recusaram a dar depoimentos para a série, por razões diversas, incluindo a falta de interesse em reviver acontecimentos que ainda eram dolorosos para eles.
—O doc é muito humano e fez questão de mostrar a força dessas famílias 15 anos depois, a luta e a resiliência. É uma questão que a gente traz muito forte. É uma camada narrativa muito importante para a gente que é mostrar o que é perder alguém. Tem dores ali que são universais —aponta a produtora executiva da série, Clarissa Cavalcanti.
Mas, a série não se resume a contar o drama das vítimas e seus familiares. Pelo contrário, vai além. A ideia era mostrar todos os lados dessa história e, para isso, a produção foi atrás dos outros envolvidos. Durante três meses a equipe viajou para França, Estados Unidos e pelo Brasil para entrevistar técnicos que participaram das investigações, especialistas em aviação e jornalistas que cobriram o caso, além dos parentes dos mortos.
—A gente queria contar, claro, todos os detalhes possíveis sobre a investigação e o que causou esse acidente. Mas não queria deixar a história humana dos familiares de lado. Um dos grandes desafios, pensando no roteiro, foi como entrelaçar essas histórias humanas com as investigações que a gente fez para dizer o que aconteceu no cockpit (cabine de pilotagem) para que o avião tivesse esse fim trágico — explicou o roteirista Andrey Frasson.
A série mostra como uma sucessão de acontecimentos, falhas tecnológicas e de procedimento resultaram no acidente que fez o avião mergulhar no mar. Para chegar ao resultado que o telespectador terá acesso assistindo o documentário a equipe se debruçou em pesquisas minuciosas de áudio e vídeo, nos processos da Justiça francesa e nas investigações iniciais realizadas pelas autoridades brasileiras.
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Os momento que antecederam a queda da aeronave são recontadas com ajuda de recursos tecnológicos em arte 3D. As conversas de dentro da cabine do avião foram transcritas dos diálogos das caixas-pretas, encontradas quase dois anos depois do acidente. Com base nesses diálogos é que foram montadas as reconstituições vistas na série.
Uma das coisas mostradas no documentário é que depois desse acidente, a aviação nunca mais foi a mesma. A tragédia alterou práticas no treinamento dos pilotos e na certificação das aeronaves. Na época, por exemplo, não havia capacitação dos profissionais para situações de perda de controle dos aviões em altas altitudes, em voo de cruzeiro, apenas em pousos e decolagens, o que foi implementado depois.
—É um dos acidentes que mais marcaram a indústria aeronáutica, o mercado e a gente. Todo brasileiro lembra um pouco o dia que aconteceu, do noticiário. Mas, a gente pode dizer que é um acidente que crava um antes e depois na segurança aeronáutica — afirma Clarissa Cavalcanti.
Depois da tragédia, em junho de 2009, todos os tubos de pitot (que ficam na dianteira do avião e medem a velocidade da aeronave de acordo com o vento que passa por seus sensores) foram substituídos. Os equipamentos foram trocados por uma versão que utiliza tecnologia capaz de fazer com que eles resistam às altas temperaturas.
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Dentre as outras mudanças adotadas, estão ainda: aumento do tempo que o localizador das caixas pretas emite o sinal, implementação de planos de salvamento e resgate entre Brasil e Senegal, transmissão simultânea da geolocalização do avião e obrigatoriedade de CPDLC (Controller Pilot Data Link Communications) — tecnologia de comunicação aeronáutica que permite o envio de mensagens de texto pré-formatadas — sobre o Oceano Atlântico.
No voo 447, os pilotos decidiram encarar uma tempestade que outros aviões que faziam a mesma rota desviaram, próximo da linha do equador. Os tubos de pitot congelaram e acarretaram perda das informações de velocidade, fazendo com que o piloto automático desligasse.
No modo manual, um dos pilotos resolveu erguer o nariz do avião. A aeronave perdeu sustentação e velocidade até que, quatro minutos depois, caiu no meio do oceano. Num primeiro julgamento, a Justiça não identificou culpa da Air France ou da AirBus na tragédia. Posteriormente, a Procuradoria-Geral fez uma denúncia afirmando que a Air France não forneceu treinamento adequado à tripulação e a Airbus não atuou de maneira suficiente para corrigir as falhas.
Em abril do ano passado, a Justiça francesa absolveu a Air France e a Airbus. A companhia aérea e a fabricante da aeronave enfrentavam a acusação de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A decisão frustrou os familiares das vítimas.
—Familiares ficaram muito frustrados com o resultado do julgamento na França, que absolveu as duas empresas envolvidas; a AirBus e a Air France e acabou colocando a culpa só nos pilotos. Tem previsão de ter um novo julgamento. Houve uma apelação na Justiça francesa e uma dessas perguntas é o que vem agora, se esse clamor das famílias vai ser respondido de alguma forma e as empresas também serão responsabilizadas — conclui a produtora executiva da série.
Entenda o acidente:
- O avião, um A330 com a matrícula F-GZCP, decolou do Rio de Janeiro, no Brasil, com destino a Paris, na França, no dia 31 de maio de 2009.
- Horas depois da decolagem, enquanto o voo 447 sobrevoava o Oceano Atlântico, a aeronave caiu.
- A bordo estavam 216 passageiros e 12 tripulantes, totalizando 228 mortos.
- As vítimas eram de 33 nacionalidades: 61 franceses, 58 brasileiros e 28 alemães, assim como italianos (9), espanhóis (2) e um argentino, entre outros.
- O acidente foi o mais letal da história da aviação comercial francesa.
- Os primeiros fragmentos do avião, assim como os corpos, foram encontrados nos dias que se seguiram ao acidente.
- Os destroços da aeronave foram encontrados apenas dois anos depois da queda, a 3.900 metros de profundidade.
- Foram também encontradas as duas caixas-pretas, o que permitiu recuperar o áudio dos pilotos do voo.
- O conteúdo das caixas-pretas confirmou que o acidente foi motivado pelo congelamento das sondas de velocidade no momento em que o avião estava em voo de cruzeiro.
- Voo de cruzeiro ocorre em uma zona com condições meteorológicas adversas denominada Zona de Convergência Intertropical.
- O congelamento levou os aparelhos a emitirem informações incorretas sobre altitude, o que fez com que os pilotos perdessem o controle do avião.
- Investigações sobre a queda revelaram que danos semelhantes haviam ocorrido antes do acidente, nos modelos de sondas Pitot chamadas "AA", que pareciam congelar com maior frequência, nos aviões A330 e A340.
- Durante o processo, realizado de outubro a dezembro do ano passado, especialistas reconstituíram os últimos 4 minutos e 23 segundos do voo a partir do congelamento das sondas Pitot.
- As últimas palavras dos pilotos e os ruídos da cabine, retirados das caixas-pretas, foram reproduzidos a portas fechadas em 17 de outubro.
- A absolvição da Air France e da Airbus pela justiça francesa por conta da queda do voo 447 ocorreu 14 anos após a tragédia.
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