O Processo Transexualizador, instituído no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2008, estabelece diretrizes para a assistência aos usuários que buscam a terapia hormonal. Com modalidades ambulatoriais e hospitalares, o processo visa promover uma atenção humanizada e especializada. Mas relatos de pacientes trans e travestis em algumas unidades apontam para uma realidade de negligência, onde profissionais cometem erros que vão da utilização inadequada de pronomes até o uso do nome de registro, não respeitando a identidade de gênero dos pacientes.
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O Programa de Atenção Integral à Saúde da População de Transexuais e Travestis na Rede Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, que visa assegurar um atendimento livre de discriminações, tem se revelado distante de seu propósito, na visão de Bento Araújo, de 28 anos, psicólogo transmasculino, que afirma ter sido discriminado na última sexta-feira no Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto, em Copacabana, na Zona Sul do Rio.
— Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Já passei por procedimentos tanto no setor público quanto no particular, e as pessoas não respeitam meu nome social, mesmo quando informado, me tratam pelo pronome errado. É como se a gente fosse um ET, um bicho estranho que elas não sabem lidar. Falta muito preparo, o que resulta em preconceito e muitas violências — comenta.
Bento descreve o episódio mais recente, que aconteceu enquanto esperava para fazer um exame de sangue para monitorar seus níveis de testosterona. Tudo começou quando foi chamado para fazer o atendimento pelo nome de registro, gritado por uma funcionária, o que imediatamente causou desconforto.
— Quando entrei na sala, as técnicas de enfermagem me olharam de forma esquisita, sem entender que podem existir pessoas trans. É um nome dito feminino e entra uma pessoa de barba, né — explica.
De acordo com o psicólogo, a situação piorou quando a técnica começou a coletar o sangue de forma brusca, causando dor e irritação. Bento conta que começou a se sentir mal, com queda de pressão e visão turva. E, mesmo após informar sobre seu nome social, a técnica continuou a tratá-lo de forma inadequada, referindo-se a ele no feminino.
— Ela me chamou de "ela" e pediu para alguém pegar uma água. Isso só me deixou mais nervoso, pois já havia informado meu nome social, e estava de barba, mas ainda assim, fui tratado como se minha identidade não importasse — diz.
O momento de maior constrangimento veio quando outra técnica, que assumiu a coleta do último tubo de sangue, instruiu a colega a trocar as luvas, o que para Bento sugeriu que havia algo de impuro nele.
— Eu me senti sujo, como se tivesse nojo de mim. Foi uma situação que me deixou completamente desnorteado. Senti como se eu alguém que não merece o mínimo respeito — concluiu.
O que diz o Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto
Em resposta à denúncia de Bento, a direção do Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto informou que não havia recebido reclamações sobre o caso, mas se colocou à disposição para acolher a queixa formalmente, apurar os fatos e adotar as medidas cabíveis. A unidade pediu desculpas e se comprometeu a reforçar a capacitação dos profissionais para o respeito e acolhimento à diversidade.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro repudiou todas as formas de discriminação, incluindo de gênero e sexual, e reafirmou seu compromisso com o respeito à autoidentificação dos usuários nas unidades de saúde.
O órgão destacou que o respeito ao nome social e à identidade de gênero é essencial e que medidas adicionais serão tomadas para garantir um ambiente seguro e acolhedor para a população LGBTQIA+.
Casos em Niterói
Outro paciente transmaculino, que preferiu não se identificar, relatou um caso de transfobia ocorrido ao lado de sua parceira trans na Policlínica Regional Carlos Antônio da Silva, em Niterói. Durante uma consulta de rotina para realizar exames de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), o casal foi tratado de forma inadequada.
— Quando relatamos que éramos um casal trans, a equipe do posto de saúde nos levou para uma sala. No início, parecia um acolhimento, mas no fim nos deparamos com uma chuva de transfobia. Perguntaram quais eram nossos nomes antigos, tentaram entender como a gente se relacionava e como funcionava nossa identidade de gênero — disse.
Em outro episódio, o mesmo paciente teve que exigir que seu nome social fosse respeitado após um funcionário da unidade de saúde se recusar a entregar um exame com o nome correto.
— Precisei me exaltar e chamar a coordenadora do posto para que houvesse alguma retratação. A questão do direito ao nome social e o erro na tratativa de pronomes são coisas que acontecem com frequência, mesmo em setores do SUS onde há campanhas para o público LGBT — afirmou.
Apesar das dificuldades, o jovem destaca que as Clínicas da Família, localizadas em bairros de Niterói, geralmente apresentam equipes mais dispostas a cumprir os direitos e proporcionar um atendimento humanizado para pessoas trans. Porém, ele também menciona que os atendimentos voltados a ginecologistas e exames são particularmente desconfortáveis, muitas vezes sem o preparo necessário para lidar com as especificidades de pessoas trans.
Outro caso ocorreu na Policlínica Sylvio Picanço, onde Giovanna Trugilho, que acompanhava sua amiga trans, Amanda Vannier, em uma consulta com um endocrinologista, testemunhou o despreparo do profissional.
— Ele disse que ela era jovem demais para fazer a transição (ela tem 18 anos) e que provavelmente ia se arrepender. Ele sugeriu que ela tentasse usar vestido e ser feliz assim — relatou Giovanna, destacando a tentativa de invalidar a identidade de gênero da jovem.
Em resposta, a Secretaria Municipal de Saúde de Niterói disse que preza por um atendimento acolhedor, humanizado e livre de discriminação em todos os serviços da rede de saúde, e que não tolera qualquer fato discriminatório. A Secretaria informou que está apurando a conduta dos profissionais envolvidos e se colocou à disposição para acolher o casal.
Veja a nota da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro na integra:
"A direção do Centro Municipal de Saúde (CMS) João Barros Barreto informa que ainda não recebeu reclamação sobre o caso relatado, mas está à disposição do usuário para acolher a queixa formalmente, apurar os fatos e adotar todas as medidas cabíveis. De antemão, a unidade pede desculpas ao usuário e se compromete a reforçar a capacitação de seus profissionais para o respeito e o acolhimento à diversidade, para que situações como esta não aconteçam.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro repudia todas as formas de discriminação, incluindo a discriminação de gênero e sexual, e adota uma série de ações permanentes para combater a violência direcionada à população LGBTQIAP+, crime tipificado em entendimento do Supremo Tribunal Federal (Lei n 7.716/1989).
Quanto ao nome social, o respeito à autoidentificação do usuário nas unidades de saúde é uma tarefa essencial do profissional, como estabelecido na Carteira de Serviços da Atenção Primária em Saúde, da SMS. Em relação ao público LGBTQIAP+, também estão entre os deveres da Atenção Primária identificar e notificar situações de violência direcionada; promover ambiente seguro para a autoafirmação, reconhecimento e busca de direitos; e abordar a saúde mental nos aspectos específicos à orientação sexual e à identidade de gênero, entre outros.
Como ações complementares e estratégicas nos territórios, a rede de Atenção Primária desenvolve parcerias com instituições e dispositivos intersetoriais de apoio à população LGBTQIAP+, oferece orientações individualizadas sobre saúde sexual e reprodutiva e realiza abordagem familiar nos aspectos específicos à orientação sexual e identidade de gênero".
Veja a nota da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói na integra:
"A Secretaria Municipal de Saúde de Niterói esclarece que preza por um atendimento acolhedor, humanizado e livre de discriminação em todos os serviços da rede de saúde e não tolera qualquer fato discriminatório. A Secretaria está apurando com os profissionais e à disposição para receber a jovem e o casal para acolhimento.
Niterói possui o ambulatório Ambulatório de Atenção à Saúde da População Travesti e Transexual João W. Nery, pioneiro entre todos os municípios do Rio de Janeiro, e que atende não só a população de Niterói, mas também de municípios da região. O ambulatório possui uma equipe multidisciplinar composta por médico endocrinologista, enfermeiros, profissionais da Saúde Mental e assistentes sociais, garantindo o respeito à identidade de gênero e assegurando o exercício pleno da cidadania de todos.
O Ambulatório, junto à Área Técnica de Saúde LGBTI/DESUM, realiza capacitações periódicas na rede municipal para os profissionais e trabalhadores da saúde, seminários sobre a história, lutas, saúde e a experiência exitosa do pioneirismo de Niterói no cuidado à população LGBTQIAPN+, além de construir espaços de promoção e educação em saúde em parceria com as diversas Áreas Técnicas de Saúde do Município para os usuários do serviço".