‘Meu filho chama a atenção em todo lugar, às vezes acho que vai cansar, mas não se entrega. Usa a simpatia para se defender’

Em depoimento ao GLOBO, Natália Jereissati conta a história vencedora de João, seu filho que nasceu com a síndrome de Apert e sobre o simpósio internacional que criou com o marido, Igor, para ampliar o acesso à informação sobre a condição

Por — São Paulo


João, Igor e Natália Jereissati Arquivo pessoal

Das minhas 3 gestações, a do João foi a mais tranquila. Exames? Absolutamente normais ao longo dos 9 meses. Mas quando ele nasceu, instantes depois do parto, senti um clima estranho no centro cirúrgico. Meu marido trouxe ele para mim, mas ele estava todo enroladinho, não pude vê-lo direito. Na hora não notei nada de diferente, mas algo havia no ar. Perguntei então para os médicos se ele tinha nascido com alguma síndrome. Falaram que sim. Perguntei qual era. Falaram que não sabiam e o levaram para a UTI. Meu chão nessa hora desapareceu. Não soube o que pensar. Lembro que no primeiro dia no hospital, acordava da pós-cesárea perguntando para quem estivesse ao meu lado sobre o que havia acontecido. A resposta mais palpável que pude ter era de que os médicos estavam investigando. No segundo dia fui vê-lo na UTI e vi os dedinhos das mãozinhas e pezinhos grudados. Uns colados pela pele, outros pelos ossos. Me perguntei: ‘como não se viu nada na minha barriga?’

João foi virado do avesso com exames. Como se tivesse sido escaneado. O diagnóstico clínico veio no terceiro dia: síndrome de Apert. Um mês depois, o exame genético confirmou.

Havia pouquíssimos dados sobre a síndrome. Tínhamos uma dificuldade enorme para entender o todo. E nesse caso era importantíssimo porque é preciso ir corrigindo os problemas no corpo ao longo da infância e adolescência. É o que se chama de “jornada do paciente”. Há um cronograma de cirurgias fazer. Até entender isso, chegar à essa informação, demorou. Não havia uma abordagem multidisciplinar. Ouvíamos especialistas, cada um com uma visão diferente. E olha que estávamos em um hospital privado excelente em São Paulo. Imagine a situação dramática para quem não tem esse acesso.

Dez dias depois, deixamos o hospital com a recomendação de que o João deveria fazer a primeira cirurgia entre 3 e 6 meses de idade. Era para liberar os ossinhos do crânio e o cérebro se desenvolver adequadamente. É uma cirurgia muito grande, foi assustador quando eles começaram a descrever como seria.

Durante esse tempo todo, o apoio da minha família foi fundamental para mim e meu marido. Criou-se um mutirão para caçar informações por meio de pesquisas na internet e ligações para médicos. Até que chegamos a um centro especializado nos Estados Unidos, o Boston Children’s Hospital, da Universidade Harvard. O próprio site deles já trazia dados mais claros e precisos, com o cirurgião da instituição falando de um procedimento menos invasivo no crânio, endoscópico. Começamos com consultas online até que nos mudamos para Boston para tratá-lo.

Fomos eu, meu marido e meus dois outros filhos, na época um com 3, outro com 5, sem nada planejado, apenas cuidar do João. Acabamos ficando dois anos. Depois da cirurgia, houve uma segunda fase, que é o uso de um capacete. Achei isso uma sacada. Por dentro, ele é feito de isopor com pontos de contato para ir moldando a cabecinha do bebê. Como a cabecinha cresce muito rapidamente, de 2 em 2 semanas tínhamos de voltar ao hospital para eles cavarem o material e remoldar o capacete.

Aos 9 meses de idade, ele fez a primeira cirurgia nas mãos para separar os dedinhos. É importante fazer nessa fase. Se demora muito o cérebro tem mais dificuldade em identificá-los separadamente. Nessa operação foram dois separados nos pés e nas mãos. Cinco meses depois foram os outros dedos. Para ajustar o dedão, mais três cirurgias.

Mesmo assim foi um tempo de muitas incertezas. Ele demorou um pouco para desenvolver a visão, por exemplo. Não sabíamos se iria enxergar. Hoje usa óculos, vê tudo.

Voltamos para o Brasil na metade de 2019. Conseguimos ter uma noção do que era a síndrome e até onde tinha realmente afetado o corpo dele apenas um tempo depois. A síndrome, graças a Deus, deu poucas alterações sistêmicas. Foi mais alteração da face, pés, mãos. Os médicos muitas vezes não se comprometem ao falar do desenvolvimento. Eles dizem “vamos esperar um pouco e ver o que acontece”. É um exercício de paciência e usamos todas as ferramentas possíveis.

Essa jornada nos deu a ideia do criar e investir em um simpósio internacional sobre a síndrome de Apert para chamar a atenção dos médicos, pais com filhos na mesma condição, pesquisadores e órgãos do governo. Ele começa hoje e vai até amanhã, em dois centros de referência em tratamento da síndrome, o Hospital de Reabilitação e Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, em Bauru, no interior de São Paulo. Teremos a parceria de médicos do Boston Children´s Hospital e do Necker Enfants Malades, de Paris.

Descobri o hospital de Bauru pelo pessoal de Boston, por incrível que pareça. Haverá discussões entre os médicos de diversas especialidades, as que são fundamentais no desenvolvimento da criança com Apert, como cirurgiões plásticos, neurocirurgiões, ortodontistas, oftalmologistas, otorrinolaringologistas, anestesistas. Vamos falar de protocolos e decisões a serem tomadas. A decisão pela primeira cirurgia do crânio, por exemplo, tem de ser rápida, no olho do furacão, para a criança não ficar com problemas cognitivos. Queremos batalhar também pelo uso do capacete no SUS. Queremos chamar atenção para todos terem informação. Teremos também associações de pais, pessoas ligadas a planos de saúde. Nosso sonho é ter avanços em pesquisas e isso só é possível se houver colaboração entre as instituições. Queremos que essas instituições se aproximem por que não são comuns os casos de Apert (ocorre em um em cada 65 mil a 88 mil nascimentos).

Hoje a síndrome do meu filho é um detalhe. Ele pega no lápis, escreve, corta, pinta. Talvez ele se canse um pouco mais fácil, mas conseguiu. Ele tem uma fonoaudióloga porque há ossinhos na face que ainda atrapalham um pouco a fala, mas dá para entender tudo. Come sozinho, é independente.

O João está com 6 anos, vai à escola. Tem uma passagem presenciada pelo meu marido que mostra muito como ele é. Ele tinha 4 anos, estava ansioso para começara a estudar. Mas a escola nos falou que não sabia se estava preparada para dar a devida atenção a ele. E, por isso, teria de passar por um teste para sentirem se ele teria a autonomia necessária. Não sabíamos como dizer isso para o João, que talvez ele não voltasse mais. Na hora que desceu do carro, o irmão que estava na mesma escola pegou ele pela camisa e falou: ‘João, preste atenção, você vai fazer um teste. E para você passar nesse teste, não brigue com ninguém, empreste seus brinquedos e abrace todo mundo. Na hora que meu marido foi buscá-lo, ele estava abraçado com a professora. Fomos então comunicados “todos estavam em lágrimas, que meu filho é maravilhoso”.

A vida dele é normal, mas temos cuidados. Por exemplo, na aula de educação física. Ele tem as falanges grudadinhas e um pouco de dificuldade de esticar o braço. Falei na semana passada com os professores que ele não tem a mesma força que os meninos da sua idade. Mas são questões que não interferem na autonomia como um todo.

As crianças ficam curiosas com ele. Já sofreu bullying, sim. Falaram que ele era feio. Mas ele não se entrega. Nunca vimos ele se acanhar. Reage. Uma vez estávamos na piscina do clube e tinha umas 20 crianças no escorregador e começaram a implicar com ele. Ele se sentou e falou: “saiam daqui, esse brinquedo agora é meu”. Botou respeito e todo mundo brincou junto.

Teremos mais desafios pela frente. As próximas cirurgias grandes serão na pré-adolescência, por volta dos 10, 11 anos, para corrigir a posição de um osso no meio da face e a mordida.

Penso que uma hora ele vai cansar. Para todo lugar que vai ele chama a atenção. Mas ele abraça isso e vai para frente. É extremamente simpático, aprendeu a usar o charme, ele se defende com isso.

* Em depoimento a Adriana Dias Lopes

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